terça-feira, 11 de janeiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VI - Desvario





“Sinto no meu corpo/ A dor que angustia/ A lei ao meu redor/ A lei que eu não queria...” (Estado Violência, Charles Gavin/ Titãs)
"Miserável que sou!Quem me livrará do corpo esta morte?" Romanos 7:23
"Ela me amava pelos perigos por que eu havia passado e eu a amava por ela ter se compadecido de mim" (Othello, Ato I)



Vermelho, verde, azul, amarelo...
O flâneur cambaleava pelas vias sem destino, com apenas meia percepção visual.
Qual seria o rumo de cada rua ? Os sentidos estavam enganosos: não conseguia experimentar as formas várias e as deformidades dos prédios sempre desarmônicostampouco aquele trecho tão familiar da cidade o afetava como noutros dias.
Mas continuava um flâneur.
Verde, azul, vermelho, amarelo... Uma compulsão por cores, em estado de quase epilepsia.
...
Melancólico, entediado e convulsivo, percebia o enquadramento diferente. Era de dentro ou de fora?
Cidade ou ele mesmo? Virara passeador de sua arquitetura corporal?
...
Amarelo, verde, vermelho, azul...
Luzes da cidade a trazer seus demônios - e não eram poucos.

Embora preocupado com o último moleque a passar, procurava desconsiderar pessoas, os faróis parabólicos dos carros e os batimentos cardíacos da noite. Barulhos o confundiam; escassez de memória atormentava.

O que eu fiz!?
...

Havia uma voz no amarelo-vermelho-azul-verde que o acompanhava, dizendo: culpado.
Errâncias urbanas não o incomodavam ou interessavam como outrora. Interagia apenas com as sonoras luzes a lhe dizerem: “há algo horrível e incurável, acima de qualquer noção humana, no seu ódio latente dirigido aos transeuntes" . Novamente ouvia: culpado.

Amarelo, azul, verd....
Então viu somente o vermelho, apesar da ausência de ondas de luz necessárias para percebê-lo. Deu-se conta do sangue nas mãos. A voz escuro-escarlate insistia: culpado.
...

Paixão antiga o levara ao desespero de aceitar que outros lhe regessem a vida.
Paixão antiga o tornara um executor de julgamentos alheios. Othello tatuado de Iagos. Era Iago do seu próprio Othello.

II

Mãos de sangue.
Ficou por momentos entorpecido pela singular e assustadora imagem.
Matara? Quem? O rubro líquido que escorria entre os dedos era seu?
Afinal, acordou do entressono andarilho.
Afinal, começava a recordar.
A cor resistia: culpado.
...

Ficou a flanar pela arquitetura inexata, que com ele se comunicava advertindo sobre a insensatez de se deixar levar afeições coléricas.
Sem poder retornar para qualquer casa, mesmo a dos pais, restou-lhe a si mesmo.
Sim, era melhor ser o antigo flâneur. Sim, melhor afagar os concretos disformes da Lapa.
Ajoelhou, sentou, dormiu exausto entre ratos mortos e vivos.
Seguranças de casas noturnas fizeram vista grossa. Caíra no lugar-comum; durante um mês, ele sempre cambaleara por ali.

Fez-se o dia, sem azul céu, sem branco-frescor de-neblina, sem verde-jardim.
Apenas o alaranjado do sol.
....
Levantou-se, chutou o jornal em que viu a notícia:
Mulher é assassinada na Urca

A polícia registrou um possível crime passional no começo da noite desta segunda-feira  na Urca, Rio de Janeiro. Acácia Bellinaso, 47, foi encontrada agonizante e desorientada; sem evidências de violência no corpo, mas com o rosto revelando muita dor. Uma faca foi encontrada ao lado da mulher.
A vítima ainda foi socorrida e levada ao hospital onde morreu.
Acácia estava bem, estabilizada - disse um dos médicos de plantão. Estranhamente morreu... o coração simplesmente parou. Parece ter morrido de tristeza... Não tenho dúvida de que houve violência; os sinais eram de sofrimento intenso, mas nada se pode provar, pois não há marcas visíveis.

A polícia ainda não tem pistas sobre o suposto assassino.
....

Deu-se conta.
Passou por um boteco que tocava Chico:

"Te perdoo/ por fazeres mil perguntas/que em vidas que andam juntas/ ninguém faz/Te perdoo/ por pedires perdão/ por me amares demais/Te perdoo/ por ergueres a mão/ por bateres em mim/Te perdoo porque choras/ quando eu choro de rir/Te perdoo por te trair"
O boteco também lhe dizia: culpado
Nada mais podia fazer.

Continuou a vagar pela noite - não mais andarilho.
Fugitivo.
Finalmente cores ganhavam real significado e repetiam: culpado.

Correu para um beco escuro e se escondeu. Não tinha como tirar o sangue da roupa e das mãos.
Não tinha como limpar o sangue dos olhos. Jamais se perdoaria pela violência da qual tinha agora embaçada lembrança. No reduto imundo do seu recolhimento, as cores sumiram, dando lugar a um negro espaço que ecoava: culpado. Pudesse apunhalar o próprio corpo, o faria, mas não teve força para isto. Encolheu-se em posição fetal e se perguntou, na esperança de uma, talvez, libertadora punição:

Quando apareceria o som-sirene-vermelho-viatura?
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