quinta-feira, 18 de junho de 2015

Um poema






"O que é o amor Rosane, em sua visão?" (Rozeli Rufino)"Saio de meu poema como quem lava as mãos/algumas conchas tornaram-se/que o sol da atenção cristalizou/alguma palavra que desabrochei/como a um pássaro."
"Cultivar o deserto como um pomar às avessas" João Cabral de Melo Neto

A palavra depositada com delicadeza
e cuidado na branca folha
Em que um pássaro também descansou.
Dialogam palavra e pássaro.
Não lhes é difícil: pássaros entendem sons
e respeitam palavras, sobretudo as que estão em estado de ninho.
Palavras reverenciam as asas – porque livres, levam
significados para além das nuvens ou o mais profundo oceano.
Pássaros compreendem as solitárias palavras querendo voar
em bando a construir o poema.

A mão que segura a tinta
Tem de cuidar para não inibir as aves,
marias, a orar e voar versos livres.
A palavra já nasceu desinibida, não carece
cuidados tantos – aparece e desaparece quando quer.

Etcéteras chegam ao branco papel,
importunando, mas sem sucesso.
As aves e as marias já solidificaram
sons e cores.
As palavras atuaram com sua
garantia de profusão de significados
ou sentidos (o leitor que se vire e mire)

Assim deve ser o poema:
diálogo entre pássaros, palavras e gentes
dentro de solo branco
feito de mortas árvores.

Somente dessa maneira as defuntas árvores
podem descansar: lhes deram valor poético.
A madeira, matéria - mater (origem do nome
de tão bela fonte de folha e flor) honrará a
raiz arrancada: mater dolorosa a gerar beleza.

Súbito, a escrevente mão descansa acanhada
pelo sol que entra pela fresta de janela
e pensa os vindouros versos.
O solar não queima; aquece os dedos
reunidos e cansados de tanto laborar,
bem como o coração obreiro de tanto esperar pelo papel
preenchido de sensações para o olhos verem.

Valerá então o poema: sem exclamações.
Estas não cabem – seria uma afronta à escrita
que, expressando mais puro sentimento,
já é clamor, brado, voz (muitas das vezes
no silêncio de dentro do operário coração)

Valerá o poema se for suave e leve -
reticências a viver espera
de reencontro, feliz ou triste -, com  mão
e  tinta a manchar o branco com ponto e vírgula –
entressono entre a continuidade da vírgula e o ponto final indesejável.

O poema, se de amor, seguirá seu curso obrigatório de
existir seco, rígido (até cortante).
O mel, caso injetado, atrairia sucessivas colmeias a
machucar a esperançosa madeira que se fez verbo
pelo pecaminoso ato de adoçar aquilo que carece de exatidão e rigor.
Amor não é romântico.
Poema-amor deve ser preciso e sério como petição a Deus.
Ou a um adeus.

O próprio amor, palavra jamais definida,
de tão abstrata e impossível de reter com os braços,
não suporta a adoçante cera.
Quer apenas valoroso pigmento -
o mais escuro -, a dar-lhe visibilidade.

Amor só se vê pela tinta,
ou pela junção de corpos
ou pelo acariciar de almas.
E amantes bizarram;
Quando amam não ficam normais.
Quando desamam, muito normais.
Amor debocha de filosofia e dicionários.
Amor é.  Sem predicativos ou elucidações.
Amor não se define..Acontece.

Madeira, árvore, floresta
Mater.
Matam-se para declarar amor.
E o amor, portanto, na sua gênese,
morre para renascer em branco papel e tinta.
E principalmente na alquimia culinária de potes de cozinha
com seus temperos: pimenta nas palavras de afeto,
maracujá na dor e sal –  o sódio é admirável
conservante dos versos de alegria (normalmente muito perecíveis)

Vale sempre uma pitada de neologismos
sem muito estilo para não parecer soberbo.
Equisitar é palavra que se aplica.

Jamais esquecer de que tudo deve ser
Oferecido em pranto saboroso
(às vezes se carrega na acidez...)

Há  sabor nas palavras.
(deguste impensável a quem tem hipogeusia seletiva)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Por que se foi



“The fundamental things apply
As time goes by...” (Herman Hupfeld)
“E já passou, não quer passar/E já choveu, não quer chegar/E me lembrou qualquer lugar/E me deixou, não sei que lá...” (Milton Nascimento)
“Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama a seu irmão permanece na morte.” 1 João 3:14


 Para Ricardo Oiticica (in memoriam)



Bora fazer o trabalho que ficou na distância
Chega perto.
É pra daqui a duas semanas
A gente sempre compete com o tempo.
(o tempo... perdi alguma coisa?)

O Parque das Araras está vazio
Você não está mais aqui...
Eu prefiro pensar que você fugiu.
Ainda assim peço:
bora conversar nos pilotis.

Implica comigo, com a minha aliança de noiva.
Diz de novo: você pretende ser noiva?
Bem dizia que o anel era de magia estranha.
O anel enforcaria meus alquímicos pensamentos.
Não enforcou naqueles anos
Enforcou agora e...
Cadê você?

Ano após ano,
eu te encontrava,
a cada esquina da Gávea,
sempre espantada
com a quantidade de filhos
que colocou no mundo.
Você pretendia repovoar a Terra
com gente melhor?
A cada encontro rápido,
um sorriso, um piada
e sua voz incrivelmente bela.

Ecoa em mim a voz.
Ecoa com função de Eco:
A lembrar, lembrar, lembrar
(nauseante) o que outros
me levaram do passado bom.
Agora é machucador.
Por que se foi?
Eu preciso do seu aconchego,
da sua acolhida.

Preciso de você na sala de outrora.
Lembra das nossas falas?
Soavam eruditas...
Ê bobagem...
Lembra de nossos embates?
Lembra de nós?
Imprudentes e arrogantes jovens,
a guerrear palavras.


O Parque das Araras está vazio de você.
Lembra das conversas?
Eu lembro do seu hálito inteligente.
O bucólico parque continua aqui.
As araras deprimiram suas cores.
O parque embaçou.
Resolveu conversar futebol com Nelson Rodrigues?
Precisava ?
O riacho parou o tímido curso
No exato momento da última batida do seu coração.
As árvores enfraqueceram suas raízes -
artérias importantes da base de chão e terra em que
sentávamos para piquenique livreiro.

Saudade das suas falantes mãos
a mexer, por diversão e sem dolo,
com os intelectos docentes.

Eu nos lembro
a enlouquecer colegas.
Cada palavra escolhida
para tirá-los do conforto inútil.

Morte. Parca, Moîra.
Essa que te levou sem minha permissão.
Não a temo.
Tenho raiva, sim
Não podia levá-lo.
Não, você não.
Jamais.
Que me levasse.
Que me levasse.
Suas habilidades enriqueciam o mundo.
Que me levasse!
Minha alma grega enfrentaria o Destino cego.
Nunca tive medo do barqueiro sequer...

Você foi irmão que escolhi.
Sim. Prefiro pensar que fugiu
Fugiu fugiu fugiu fugiu sumiu.
Eu lhe pareço calma?
Estranha isso?
Você sempre me deixou assim...
Calma. Com que se espanta?

Notícia sua me chocou.
Soube ontem.
Procurei seu nome e encontrei seu óbito.
Uma foto.
As mãos.
E o traiçoeiro comboio se foi há dois
anos.
Poderia ter me chamado.
Eu iria.

Sua partida foi dor em mim.
Curiosamente, como é do seu feitio,
com essa dor, apagou outra.
Tamanha grandeza faltosa e cruciante
apagou incômodo recente.
Sua morte me custou a cura.
Eu preferiria descurar.


Tudo ficou tosco, irrelevante.
(será que padecimentos vão se revezando para angustiarmos menos?)

Jamais te chamei pelo apelido.
A cadeia sonora é pequena.
Não te honra o bastante.

Volta!
Volta!

E não se preocupe.
Ainda estou entre as verdes azuis araras embaçadas,
sentada no chão a esperar.

Agora vem, usa suas mãos discursantes
e me ensina a sofrer menos,
Ainda que esteja a vida dolente em excesso.

Volta, Oiticica,
Vamos bagunçar e alegrar a vida
até o dia amanhecer,
apontando, com sua luz, que tudo foi pesadelo.

Espero me venhas com sua sempre verdade, integridade
para eu ter meu corpo limpo, meu coração leve
e meu fígado menos intoxicado.
Assim doerá menos ou não doerá.



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