segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Faminta


“Saber e sabor têm a mesma origem” (Junito de Souza Brandão)

Ávida de conhecimento,
não encontro, muitas vezes, respostas. Tenho perguntas.
Insistentemente mordo e sugo livros,
na esperança de entender, por meio das palavras,
o funcionamento da vida.
Uma delas é futuro; outra, passado.
Não conseguimos nos proteger do ontem e do amanhã.
Sempre serão surpresa, boa ou ruim,
a nos escolher com reféns.

Em muitas circunstâncias não controlamos o que nos foi feito.
Diz-se por aí que podemos controlar o que fazemos com o que nos foi feito.
Penso diferente.
Às vezes o evento é tão avassalador que nos paralisa.

Não me venham com filosofias e frases de autoajuda.
Elas enjoam.
Ofereçam-me o sabor doce de Adélia Prado
ou o saber amargo e maravilhoso dos contos de Machado.
Sorvo a delícia do dois.
Guimarães Rosa me sabe muito bem.

Talvez encontre nas letras, como quem joga búzios,
respostas para o que o coração deseja conhecer.
Por exemplo, como entendo a agonia?
Como me explicam as ausências?
Por que malversam tanto a palavra amor?
Por que me pirateiam os sentimentos e,
sem devolver, os atiram ao chão imundo de uma rua qualquer?
Ê sina!

Esgotada, faminta e medrosa,
peço, nesse momento, ao espírito de meu segundo pai e mestre,
que me deixe morder um gomo de tangerina. O sumo me trará nutrientes
sem invadir com ideias.
Mas ele, rigoroso, me diz:
Filhinha, eu te amaldiçoei. Desde sempre, sua boca está nos olhos.
Alimente-se de linguagens e conviva com sua atávica curiosidade
sobre o ato de existir.






terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Dispersos



É impossível não acreditar em Deus. Não exatamente por conta das maravilhas da natureza ou qualquer coisa de que falem meus iguais. Falo de como funciona o Cosmos: a lei do retorno, as experiências em que não acreditamos quando as temos, algumas agonias insuportáveis e a recompensa após muito sofrimento – a vida, de repente, se abre. Só pode existir algum Diretor Executivo organizando esta zona que é viver.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Culto




Estala, coração de vidro pintado!(Álvaro de Campos)


Guarde no corpo
a gota de salgado suor que caiu em seu íntimo,
fazendo caminhos que somente eu consegui.

Use o carinho mais urgente
para recuperar o tempo perdido
com inúteis mazelas.

Escorra a mão no meu rosto,
permitindo que meus olhos se avizinhem aos seus.
Desperta em mim as chamas apagadas
por aquele sopro com hálito de descaso.

Deixe que eu sinta os braços e pernas presos
ao seu sorriso
e usa a boca para marcá-los,
pedaço em pedaço, com uma ternura lasciva –
e, por ordem do amor, canonizada.

Depois, deite ao meu lado em liturgia.
Permita que o silêncio acasale nossos corpos,
usando sua língua para pousar na minha uma hóstia.

Então fiquemos assim,
contempladores que seremos,
a orar, comungando um poente mudo de paz.








segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Dádiva


"Não chove há 27 dias no Rio e não há previsão de chuvas" (G1 notícias)
"E orou outra vez, e o céu deu chuva e a terra produziu seu fruto" Tiago 5:18


Vai chover, sim.
Nem sempre o sol é o mais adequado para Deus.
Altíssimo também acha que peito pesaroso precisa de irrigação.

Chuva lambe, lava, leva, alivia.
Arrasta com força voraz o que estiver no caminho –
dores, mágoas, arrependimentos, angústias.

Quando criança, estava em estação de férias, gripada.
Minha irmã riu por eu não poder ficar na piscina como ela.
Choveu na área da piscina e não onde eu me encontrava.
Era Deus mandando o seguinte recado climático:
Não deboches, menina, tal qual a diversão acontece na água,
no seco também se faz.

Sol escaldante às vezes é bom: molda o caráter.

Porém: que venham temporal e raios de verão espumante,
de borbulhante verão, para que nossos corpos se refresquem e se embriaguem ao menos uma vez de alegria serena em corações docilizados.

Neste momento o milagre pluvial se manifesta.
Eu abro minha boca e engulo cada pingo.
Sei que um deles me purificará.

Encontro um amigo. Ele para e diz - está chovendo e você não trouxe proteção,
mas não importa: a chuva te encharca para uma festa -
querida, você está quase Givenchy.


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