sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CRÔNICAS DE SOLIDÃO V






Letícia

Sofria já naquela hora em que lera Sartre: “ a angústia surge pelo fato de sabermos que somos livres, livres pra escolher. Estamos condenados à liberdade. Somos senhores de nosso destino”

Letícia queria escolher o nada. Estava agonizante.
O que fazer?  As opções da vida estavam lá, quietas, esperando atrás de uma porta ou de paisagem sonhada. Essas escolhas não as tinha, pois não estava senhora de seu destino.Não sabia. Não sabia fazer.

Abafamento, insegurança, humor espremido, ressentimento, dor e ferida na alma. Medo. Era o que sentia: o doloroso aperto.Olhava por um buraco de fechadura - olhava atemorizada.Temia abrir a porta. O cotidiano simples era um ato bélico: poderia ir ao banheiro? conseguiria chegar à cozinha?
seria agredida por essas afrontas aos carcereiros que com ela moravam? Diuturnamente era submetida a armadilhas psicológicas ou físicas; não conseguia dar os passos sem grande ansiedade ou apreensão. Por vezes se continha para obter alguns benefícios. Isto de nada lhe servia.

II

A vida pela ótica do buraco:
Não podia ver o espaço externo completamente.
Via pedaços: a realidade tomava a estranha forma poligonal e circular.
Estava presa a essa realidade.Era prisioneira com chave na mão.
Por que não usava a chave? A outros parecia tão simples.

III

Trazia outros reféns consigo,
guardados pela fechadura:
suas várias formas de estar no mundo, reclusas.
Tudo em função de...?

III

Ah, Letícia era definitivamente afetiva. E pouco prática com sua vida.O que fazer? Se ficasse inerte, viriam os sintomas da ira tão engolida a lhe trazer úlcera; se tomasse as atitudes (que sabia) certas, o lastro da angústia seria maior.
Paralisou.
Entretanto, uma pequena inquietação permanecia: saio? ligo? choro? chuto o balde de uma vez?
Nem se chamava Letícia: mudara de nome na esperança do significado - alegria.
Desejava a alegria com o útero. Desejava parir alegria, vomitar alegria, suar alegria.
Mas estava detida. O veneno dos dias acarretara um efeito de vírus pernicioso: desconforto, dores e falta de ar. Não conhecia vacina que lhe sacudisse o bastante para virar sua leoa e sua senhora.
O que fazer?
Os agentes repressores estava ali, sempre a lembrar-lhe de que ela não podia ser livre e feliz.
A mãe, com objetivo de ajudar, anunciou comprar um urinol para que ela ficasse mais confortável e não precisasse abrir a porta. Nesse dia, Letícia chorou pela isenta ausente matriarca.

IV

Custosamente deu um passo... apenas um...
Voltou atrás num susto de liberdade. Naquele segundo, sentiu-se aliviada.Optou por apenas um passo - e um outro pra trás. Dia seguinte, acordou calma, até alegre e atenciosa consigo mesma. Tinha contudo de ficar inerte para reter essa paz. Arriscou outro passo... um passo apenas, interrompido por
telefone e urgências. Veio a voz já tão conhecida e amigavelmente opressora a lembrar da sua privilegiada condição de detenta cuidada com afeto amargo de comida e estada oferecidas com máxima crueldade.

Voltou a angústia e o medo - igualmente parceiros.

“Meu Deus! Estou trancafiada no agora? O que faço pra mover o fluxo de sangue e vida?”

Ficou completamente sem ar. Na alma, vazio. No corpo, insuficiência aórtica.

Pediu, pediu, pediu.

Pediu uma liminar de paz a Deus.

V

E, nesse dia, num súbito e curioso alívio, olhou a luz pela janela. Olhou firme.Não usou a chave.
Arrombou a fechadura da porta, arrancou-a da mente e saiu do porão.

VI

Decidiu caminhar pelas ruas já conhecidas - agora conseguia cheirá-las; saboreava cada passo firme às custas de muito esforço.

Estava finalmente só e bem.

Agora, sim, sabia o que fazer: viu o mar (realmente o viu), caminhou até uma livraria, tomou café.
Fez seu dia, sem se preocupar com frustrações que outrora eram um estímulo à sua tetraplegia emocional.

Sorriu.

Fez então jus ao nome escolhido.


Nota da autora: este conto-crônica fala sobre mim. Eu o assino e lavro. Dei-me o nome Letícia, cujo significado é alegria, na esperança de alcançá-la. Daquele cárcere raro lembro; porém o que escrevi até pouco se manteve em repetições vividas, dentro de contextos outros, alimentando um estado de espírito pungente. Não sei se seria capaz de cerzir a pele rasgada que reveste a alma; mas consigo, não sem pena, manter em pé o corpo e seguir, ainda que claudicante, as estradas que se anunciam. Alegria escolhi como nome; felicidade me acontece no susto-ilusão das auroras.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CRÔNICAS DE SOLIDÃO IV - Rebeca







"Sandra, 50: quer tomar um café com alguém, acima de 35 anos; Maria Eugênia, 36: quer encontrar com alguém, 35-45; Maria de Tal, 42: quer encontrar com alguém, 40-45
Algo que eu gostaria de dizer é: quero conhecer pessoas sérias, com ótimo humor…sou uma pessoa q amo a vida,!!! bjs a todos!!!!
sou ainda um rascunho inacabado, de um sonho perfeito. Digo 'ainda' porque meus traços reais vão aparecendo a medida que me permito ser moldada pelo Amor. Caminho na busca por ver minha real face. Sei que verei essa obra acabada um dia. Serei feliz…Quer adentrar? O risco é todo seu….?!?!? aviso: sempre deixo marcas e marcas eternas" (trechos colhidos de diversas comunidades de relacionamento)




Rebeca
Pequenas porções de ilusão/Mentiras sinceras me interessam/ Me interessam, me interessam (Cazuza e Frejat)
Quem disse que não posso?? O que você não tem é coragem de fazer o mesmo, né?! Então não atrapalha. Vou colocar fotos, também uns textos aí que eu copiei de blogs e encontrar alguém que preste.Imagina!
Afinal...
Escuta, Tá me chamando de lixo? Eu tenho qualidades. E muitas. Só tenho dificuldade de encontrar na rua, no trabalho, aaahhh você sabe. Estou há dois anos sozinha. Quero um namorado.

II

Sabia-se corriqueira. Sentia-se bela, porém com inseguranças. Cada namorado deixara marca no seu otimismo. Mas o potencial estava ali, era apenas se mostrar, com todo o seu  shape - expressão que um cara escreveu pra ela no perfil. Ai, que fofo! depois que ela viu o que significava...
(como era amigo o google tradutor! - ia adotar a expressão)

Comum, sim. Mas e daí? Pela pesquisa no site podia ver mulheres iguais com um quilo de amiguinhos.

E de virtual a internet tem é nada. Virtuais são as pessoas que via na rua. Nem olhavam pra ela.
E ele? deixou na espera, não deu notícia, isso depois de seis, seis, seis, seis meses de, sei lá, encontros na Lapa????

#Euqueroémais , para Rebeca, se tornou mantra. E hashtag nos sites.

O carinha aí da casa da esquina me olha prometendo e não faz...Vai ver é... Ih, não pode falar, a vizinha escuta.
O preconceito curiosamente aumentava a autoestima.

Rebeca se exibia no site com fotos de festas, saídas com amigos, dançando, comendo, bebendo; compulsivamente colocava as imagens de felicidade - real apenas em imagem.
Roupas, boquinhas , rosto, corpo: tudo em vitrine.

Pronta pra ser confundida com uma multidão a fazer o mesmo.
...
Ah, mas aquele loiro que entrou no meu perfil é o sonho perfeito. Com esse eu saio.Meu ex vai me ver, morrer de raiva, perceber o que perdeu, sentir falta, ficar pasmo, cabisbaixo,Ilusões, pensamentos aflitos, pulsação urgente.Tudo no conforto do lar.

Finalmente conseguiu o fixo e o whatsapp de alguns candidatos. Pagar pelo site, não. Deu seu jeito.

III

Telefone, campainha no máximo, distorcendo som.Uma voz maviosa dizia o oi gata, oi boneca, oi neném, oi anjo, oi princesa de sempre. Ela  a d o r o u. Se sentiu.

E foi.
Para o boteco, ela mesma convidou. Ah, sou livre e moderna e a foto dele... UI!
E me envia mensagens tão mentirosamente lindas...

IV

O boteco estava encervejado e apinhado. Olhou em volta, reconheceu a face.
Como chego? como falo? Pânico - meu Deus, acho que volto pra casa agora.
Não. Uso meu charme.
Será que essa calça tá boa? Cadê o espelhinho? Acho que tem batom no dente...

Chegou pertinho, disse boa noite, sorrisos, sentou. Pretendia falar muito. Cabelo pra lá, cabelo pra cá, boquinha distorcendo o batom.

O homem não mostrou os dentes. Olhou, olhou, olhou.
Passou o scanner.

Na ilusão de Rebeca, a conversa amigável. Simpatias em comum. Tudo certo. Pronta pro bote.

Na desilusão dele...
BARALHO.. WTF? , q mulher feia du caramba... na foto de biquíni era mais interessante. Tudo photoshop... Como eu...????
Discretamente fez tocar a campainha do próprio celular. Falou com o nada.
Aí, linda, meu amigo sofreu um acidente. Vou lá. Você pega um táxi? Eu pago.
Você é dez, tá ligada? Muito linda.

Sem bla bla bla...

V

Sorriso amarelo, ela continuou a mexer no toucinho cheio de alho e óleo.
Mãos de colesterol, bumbum nada redondo e queixante, não perdeu o rebolado.

Mirou um qualquer não virtual e sorriu.
e bla, bla, bla,bla,bla,bla.

Fisgou. A carência em comum fazia deles o casal perfeito.
Pensaram se apaixonar.

O convite de casamento foi criado em evento no Facebook

Rosane Gomes

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

MARIANA


"Fique assim, meu amor, sempre assim/ E se lembre de mim pelas coisas que eu dei/ E também não se esqueça de mim/ Quando você souber, enfim, de tudo que eu amei" (Valsa para uma menininha)


I

O primeiro som não foi choro,
Foi melodia...

Obstetra, pasmo,
disse “ bravo!"

Boca de leite de peito,
desejo de dedo na boca,
choro-vontade-de-colo.
Curuminha cresceu.

II

Menina-luz
aluada
lunar
Doze aninhos - toma banho de lua com a mãe.

Feliz,
toma sol também.
Segura e acaricia a bem-me-quer...
Aspira sempre mais do contentamento...
Da tristeza, tira sabor madurinho-carambola


III

Noite sem luar chegou.
Outono trouxe o manto escuro,
e entristeceu os olhos de menina.

IV

Curuminha amadurou precoce.
Ainda assim, alimentou de alfazemas
os arredores.

V

Ventos na varanda,
trouxeram solidões...
Aproximaram perigos.

VI

Curuminha vela a mãe da ventania,
Leva brinco-de-princesa,
lava mágoa,
Toma conta.
Zela.

Sofre com dores
evitáveis,
inevitáveis,
impossíveis,
mas levanta.
Levita.

Sacode a amargura,
faxina a dor.

Alcança, sem medo,
as consequências de ser
Plena,

E borda com meigas orquídeas -
de um constante amanhecer pacífico
as paredes pungentes da casa.
Curuminha encontra asas e voa para longe com a mãe.

VII

Ventos mornos na janela trouxeram aconchego.
Curuminha com uma corda de violetas, sai do abismo.

Mexe os cabelos
de ainda-menina
e, sorrindo, luminosa,
fragiliza as maldades.
Sem poréns.


Malagueta e mel.

Bela - e fera.


Minha absoluta - e única - ternura.

EDUARDO


Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.”
(Lya Luft)

I
Fui Gaia, pouso e repasto de tua criação.
Sobrepeso delicioso
dos pezinhos na barriga,
nasceste.

Eras o meu menino
“o menino de sua mãe”
Para mim, foste amor revelado,
alma compartilhada, confluências umbilicais.
Entre silêncios e conversas
meu mundo inteiro pensado em ti.
Todas as alegrias -
cuidados, sempre urgentes...

II
Entremeio terrível - obras de Ares
ou a ira dos anjos, que importa agora-,
lançou-nos no limbo onde brincadeiras e risadas não entravam mais.
Veio a partilha, a solidão...

III
O tempo pretérito do interregno - deixou-se
vencer: foi engolido pelo túnel do cordão
ancestral jamais ceifado.
Depois, o reencontro
endividado de amores.

IV
A mão, agora, firme
a voz, agora, grave.
Heranças de avô materno...
O menino, hoje,
cuida de mim.
Ensina-me os passos
Aponta-me lugares
Espanta-me os medos
Afasta-me dos perigos.
Sou agora filha.
(alcance o mundo, meu amor
mas não te afastes em demasia...)
Sendo norte, mesmo que distante,
Sorrindo, ilumina os caminhos
Abraça-me a tua voz
Embala-me a vida teu olhar, assim como um dia te acalentei nos braços.

Não existirá outro magno amor em minha vida.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

CRÔNICAS DE SOLIDÃO III (Retorno à Caverna)








BORIS

"Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade."(Eclesiastes 1:2)
" E ele lhes cumpriu o seu desejo, mas enviou magreza às suas almas."(Salmos 106:15)


Percepção delirante, alucinações na forma de vozes que o acompanhavam naquela atividade repetitiva. Estava mesmo preso a um estado de natureza humana, encerrado em morada subterrânea e cavernosa com apenas um pequeno acesso à luz. Desde sempre, o pescoço e as pernas presos de modo que permaneciam imóveis; só via os objetos que lhe estavam a um palmo dos olhos. Preso por computadores que lhe permitiam ligar-se ao mundo inteiro, não podia voltar o rosto.

Atrás dele, a certa distância e altura, um fogo ofuscante; entre o claro e o cativo, um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro que não lhe permitia ver totalmente os aparentes bonecos de mola que pensava poder manipular.

Tic Tac, Tic tac, tic tac. Único som real: o tempo fugindo.

Virtualidade. Era esta sua dependência. Desta forma colocado, não poderia apenas ver de si mesmo e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas.

Tic tac, tic tac, tic... ("Mas ele foge: irreversivelmente o tempo foge")

Perdera o contato com a realidade, experimentando ideias bastante irracionais, revestidas de uma fala aparentemente lógica. Convencia a todos os outros cativos de suas verdades distorcidas.
O ar seguro (escondendo os grilhões) mascarava seu empobrecimento afetivo. Delírios e delírios provocavam uma crença em si mesmo; ele era a sua religião.

Pregava aos outros cativos, certo de que o perseguiam. Acreditava ser atormentado, seguido, enganado, espionado ou ridicularizado. Acreditava também que certos gestos, comentários no escritório, tarefas efetuadas pelos outros, eram dirigidos especificamente a ele.Tinha desatinos de grandeza.

De fato não cria que houvesse nada de real e verdadeiro além das figuras-desvario que desfilavam entre as baias e divisórias que o rodeavam.

O que aconteceria caso se livrasse num átimo das cadeias de erro em que laborava?

Na hora mais imprevista este cativo foi desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a ouvir e a olhar firmemente para a luz. Nada disso aconteceria sem grande pena; a luz, além de lhe ser dolorosa, o deslumbraria, convidando a distinguir seres e objetos. Antes avistava somente sombras.

O que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só vira fantasmas e que, agora, empurrado para a realidade, enxergaria com mais exatidão?
E se, alguém, apontando-lhe as figuras que lhe desfilavam anteolhos, o coagisse a dizer o que eram?
Seria sua grande confusão. Poderia fazê-lo sem dor?

Então aconteceu.
Persuadiu-se de que o que antes vigiava era menos verdadeiro que os objetos ora contemplados.
Com dificuldade, desviava as pupilas doloridas para as sombras que antes lhe eram confortáveis.

A realidade o fez subir por caminho áspero e escarpado, para somente o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol. Dava gritos lamentosos e brados de cólera, apesar da notável sedução sentida diante do esplendoroso ambiente.
Precisaria de algum tempo para afagar a claridade.

Finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplou mais facilmente os astros da noite. Depois, o pleno resplendor do dia.
Recordou-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e de sua ilusória e hiperbólica sabedoria; se deu parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a perda do poder sobre outros.
Se na claridade recebesse elogios, honras e recompensas por mais prontamente perceber as sombras  - sendo o mais hábil -, tanto melhor. Afinal, guardava na alma o cativeiro. Este homem teimava em voltar às primeiras ilusões. Mas os grilhões não estavam mais ali.

Vencido e derrotado, levantou-se. Xingou adeus definitivo aos colegas de trabalho.
(Soube-se que foi tratar da Personalidade Esquizotípica)

Alívio no delírio.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

CRÔNICAS DE SOLIDÃO II







Benedito

A mão passa na aspereza. 
O verniz que se foi. Não. É a árvore que regressa.
(...)"
(Carlos D. de Andrade, "Indicações" - em A rosa do povo)

"Eu o estudo desde longe, porque somos diferentes/Ele cresceu com os tempos/ 
Do respeito e dos mais crentes" (José / Piero – Vs. Nazareno de brito)



Garrafeiro das antigas, estacionou o carro de madeira, empurrado, todos os dias, com esforço.
Desavisado de sua não pertença ao lugar, pediu café, que lhe foi servido com biscoito, copinho de água com gás, e desadoçante má vontade. Espantou.
Primeiro achou que lhe davam cachaça, depois sentiu as bolhinhas gasosas.

Luxoso! Como estava sendo bem atendido! Tinham percebido que era homem de respeito (valera a pena usar camiseta não rasgada naquele dia). Ê, inocência...

Então se alargou: palavras, palavras, palavras. Abundantes palavras. Carecia: compulsivamente.
Na delirante candura, todos eram camaradas.

Todos (com risadas de canto) eram atentos à contação de sua história pessoal - das dores e melancolia da vida inteira que desenhavam as rugas e sulcos de seu rosto. Havia nele a urgência de contar, sim, como havia. Precisava do verbo para segurar o fio de vida que lhe restava.

A cada gole breve de café ou a cada frase, um sorriso sem retorno, um outro correspondido por culpa católica, alguns atirados ao ar. Ele brilhava suor de alegria.

Com roupas simplórias, cheiro de asfalto, rosto intenso - fazia da loja de conveniência sua sala de análise. O balcão era o divã.
precisava precisava precisava

Seu barulho incomodava atendentes e consumidores. Se irritavam.
Era uma agonia...
O velho falava repetidas vezes: Você não sabe o que é andar na esteira por nove minutos! É…! Não é mole não! Você já fez esteira? Coisa muito modernosa. O doutor consegue ver o coração da gente.

E contava sobre o remédio que, descuidado, poderia ter tomado duas vezes: Acho que tomei o da pressão duas vezes, tô tontim, café ajuda.

E falava da prima: minha prima, fez a mesma coisa, menina!? E foi parar no posto de saúde. Perigo, hein?

E falava do nada repetidíssimas vezes: éavida, éavida, éavida, éavida, éavida…

Falava pro vácuo:

A cada dia, quando voltava para casa, tirava o peso da carroça e o das angústias - contava a uma senhora com olhar de vou-pegar-doença-de-pele.

Filhos, sumidos no mundo - dizia à balconista com olhar de vou-ter-de-limpar-o-suor-do-balcão.

A mulher, companheira de 40 anos, perdera para os mesmos médicos negligentes com que ele se tratava - confidenciava a um rapaz de olhar vou-dar-um-chega-pra-lá-no-mané.

Ele era um solitário que optava por se distribuir na rua na esperança de pescar uma alma que fosse para compartilhar sua existência. Queria ouvidos, sorriso, conversa e não a esmola que uma enricada lhe ofereceu para se livrar da incomodante figura.

Terminou o café, comeu o biscoitinho grátis, achou graça da água oferecida num copinho de cachaça Coisa de gente fina, né filha? A jovem assustou com possibilidade de misturar cheiro de Channel com odor de sujo suor.

Sua vontade de dividir a vida era inconveniente.
E ele nem percebeu.
Não percebeu que seus relatos sufocavam o egoísmo dos convivas.
Absurdo se misturar com gente de bem.

Ele saiu feliz - O café é caro, mas... gente fina! Acho que fiz amizade com aquela
Ele descansou da tristeza.
Pegou a carroça, saiu cantando: Aaai, corra e olha o céu, que o sol vem trazer bom dia!
(belo Tenor)

Para os que ficaram - alívio com a saída do discrepante incômodo. 

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Nota da autora: Católicos, evangélicos, espíritas, não importa. Não conseguiram se lembrar de algo que resume TODA a Bíblia: "Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo."
Eu estava lá, assistindo, daí nasceu esta crônica. E fui "o silêncio de São Paulo diante da chacina [afetiva]." Não me senti culpada. Senti minha incompetência mesmo. De fato, vivemos a era do Déficit Atroz de Atenção. Olhares simpáticos, atenções a quem não conhecemos, sorrisos sinceros para quem se nos dirige nada custa. Não nos custa um centavo. E, muitas vezes, sem o saber, salvamos uma vida.
Adoro e copio a frase de Clarice: Amém para nós todos.

Rosane Gomes

CRÔNICAS DE SOLIDÃO I




I



HOUSEWIFE


Palavras, palavras, palavras. Nada além de palavras. Ela adorava falar: no mercado, na feira, nas lojas - compulsivamente. Todos eram bons psicanalistas. Todos (com risadas de canto) eram coniventes com as dores e alegrias que preenchiam seus dias fragilizados pela inércia da vida inteira. Havia urgências, sim, como havia. Precisava do verbo para apalpar a vida.

A cada passo, um sorriso sem retorno, um outro correspondido, alguns atirados ao ar. Ela precisava.

Sempre muito arrumada, perfumada, seus brincos balançando, também fazia do caminhar nas ruas uma conversação com o mundo.

precisava precisava precisava

Os vizinhos não entendiam muito o porquê de tamanho contentamento. Se irritavam.
Era uma agonia...

E, a cada dia, entrava em casa, tirava os luxos.
Perfume, ausente.

Enfim, ela podia oferecer sorriso fraco e franco aos filhos, ao marido. E um presente para a Solidão.

Alívio do silêncio.


Rosane Gomes

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A um ausente



“Tenho razão de sentir saudade,tenho razão de te acusar.Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora.(...)
Antecipaste a hora.Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas....” (Drummond)


Tristeza por ter perdido alguém cujos livros ora me revoltavam, ora me apaixonavam.
Sim, perdi, não porque o tivesse na convivência pessoal ou em presença (como queiram);
perdi a futura convivência com novas brigas e identificações. Eu ousava falar com ele em cafés, passando por lunática; fechava livros prometendo não mais lê-los. Lia por 3, 4 vezes o mesmo livro.
Saí de uma livraria recentemente brigada com ele (“como você ousa se referir a Eclesiastes desse jeito?”). O livro se chama Caim.

O conto da ilha desconhecida foi uma demostração de afeto e doçura - ele cuja “montagem humana” era ácida.

Iminência da morte foi um tapa na cara. Ensaio sobre a cegueira, outro. O Ano da Morte de Ricardo Reis, deixei pela metade. (uma das maravilhas de ser leitor é a liberdade; outra, a intimidade com os textos - e com um cheiro dos livros que nenhum perfume francês jamais alcançará)

E as citações! Procurei feito doida (como um monte de gente que conheço) o Livro dos Conselhos (“ Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”); o Livro das Evidências (“Tu sabes o nome que te deram, mas tu desconheces o nome que tens”) - pra, depois, ler entrevista no jornal: “eu inventei esses livros”.

Ah, ele seduzia... e como!

E o seu maior encanto era o de não se querer encantador.

Um delicioso saber agridoce se ausentou dos meus olhos hoje.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Denominador Incomum




"A Matemática pura é, à sua maneira, a poesia das idéias lógicas"
(Einstein)

Lúcia era primo:
Divisível por si mesma em mil, zil.

Nunca elevada a zero -
inadmissível resultar 1, solitária.

Ainda assim não lhe bastava
Pretendia a forma aberta da sequência
que lhe permitisse liberdade lógica ad infinitum.

Preferia a poética do cálculo,
a instabilidade da evolução temporal
com todas as variáveis - sua liberdade...

Queria a interação
e o movimento sutil que desencadeasse
outros movimentos aleatórios - o prazer do imprevisível.

Desejava ser fração.
Jamais seria numero inteiro.
("zero é isto", ensinava)

E queria o Princípio da Incerteza
E queria o Caos
que levasse a realizar
o seu
próprio verbo
e derivações.
(o simples olhar humanizado
poderia moldar a realidade física.
e isto também era liberdade)

Assim, Lúcia,
alumiada
clara
iluminada
poética
Esclareceu o dia,
os dias;
instruiu e ilustrou o cotidiano daqueles,
que, sentados em cadeira escolar,
descobriram ser Matemática
ciência (in)exata, diária e comum...
“Fácil de alcançar - e de voar”, dizia.

Os alunos, aliviados, paulatinamente descobriram segredos e mistérios:
Era delicioso aprender!

Lúcia e seu requinte singular...
Desejo e ânsia de Educador.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Farmácia II

Ih...
Toninho, atende aquela mulher do outro dia,
Eu não aguento.


Ok.

Oi, fofo, vou te passar uma lista.

Pode falar.

Anti desânimo noturno, solução, 50 ml
Anti animação extrema diurna, comprimidos, 10 mg, uma caixa
Comprimido pra auto-estima inflada delirante, 5 mg, 5 caixas
Xarope pra visão seletiva, 2 frascos
Comprimido pra personalidade histriônica, injetável
Ah, e vê agulha bem grossa, viu? Porque sem sofrimento não cura.

Traz aquele remédio que mata a muriçoca.

Qual????

Ô, meu filho, o Aedes tapeatus, o mosquito que pica e faz uma pessoa enrolar a outra! Não viu no jornal, não??? É epidemia!
Esse você separa a conta, porque é pra casa do meu bofe.

Ok.

Me vê também o manual de técnicas de respiração pra eu não surtar com o paciente

Esse tem na banca de jornal, minha senhora.

Tá.

São 500 reais e o remédio do mosquito cara de pau esgotou, só no mês que vem...

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Farmácia



Anota e vê o preço, por favor?

Pode falar.

Pílula de felicidade, 50mg
comprimido de cala boca, 10 mg
xarope pra grosseria noturna
aquele de 100mg pra explosão diária
anti surdez seletiva, injetável,20 ml
o anti insensibilidade, 200mg
Anti desânimo noturno, solução, 50 ml
Anti animação extrema diurna, comprimidos, 10 mg, uma caixa
Comprimido pra auto-estima inflada delirante, 5 mg, 5 caixas
Xarope pra visão seletiva, 2 frascos
o tarja preta para Transtorno de Personalidade Histriônica, 10 mg, injetável
Ah, e vê agulha bem grossa, viu? Porque sem sofrimento não cura.

São R$ 1.500,00.


Aceita cartão?

Sim.

Ah, preciso de remédio para o que não tem remédio, 50 mg
Não quero o genérico.

Pra esse tem fila de espera. vou lhe dar a senha.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Dieta








Vontade de fazer um poema.
Infelizmente meus hemisférios
resolveram brigar.
Entre o criativo e o prático,
discutemCoisa à toa, cotidiana.
Mas quero escrever.
Impossível:
a casa pra arrumar
mercado pra comprar
filas pra esperar
contas pra pagar
trabalho trabalho trabalho
Celular, péssima invenção
na vida da escritura.
Pertubômetros, chatômetros
- com tabela, velocímetro e tudo mais-
me obrigam ao corte de calorias sintáticas.
Vou consultar a tabela,
ver o quanto cada palavra me pesa.
E mais
Será que tomo pílula de desescrever?
Vai que um dia engravido de palavras...
Arrumo namorado não!!!
Quem vai assumir a criança?

domingo, 14 de março de 2010


Dilema

tamanho sofrimento
irritação
choro
desespero
desprezo
asco

carrasco!
não falo mais.

mas a voz dele me envolvia como seda...

sexta-feira, 12 de março de 2010

Desacerto II







"Com ela, sim, me entendo bem melhor.Mãe é muito mais fácil de enganar.Razão, eu sei, de mais aberto amor" (Drummond)

A casa era caórdica.

Filhos adolescentes. Ora sala vazia, ora tênis no caminho. Vida comum, até boa.
Ela adquirira, com o tempo, várias repressões, convivências, dependências, carências...tudo dentro da sacola de mercado junto com o sabão em pó.
Organizava a casa e a vida de todos. Afinal, era mãe.

vocês vocês vocês vocês vocês vocês vocês!
Eu era pronome profano. Como pensar em si?
Absurdo de irresponsabilidade e falta de comando.

Repetidas vezes encarnava o expressionismo de Munch. Ela era O Grito. Sobrevinha uma angústia existencial diante de brinquedos não avaliados e aprovados.

O quadro berrava:
JeSUS! Não abre essa caixa! As bolas são pequenas,são perigosas,esse menino vai pegar,colocar na boca, vai engolir, vai sufocar. NÃOqueroESSEbrinquedo! Ai, Meu Jesus!

Haja fôlego para tanta vírgula... E haja Jesus para tanta mãe...
(mães são videntes, além de  médicas, enfermeiras, professoras. Mãe sempre tem notório saber)

Sai daí! Não implica com sua irmã!
Onde já se viu largar meia no chão?
Não cospe na comida!
Entra na piscina, filha, o professor vai ficar perto. ENTRA NA PISCIIIIIINAAA!
Você pode colocar meu filho em um dos times? Ninguém escolheu...

JÁpracamaDORMIR! E... (o que ia falar mesmo?) PRONTOtáVENDO? Esqueci o que ia falar. Me tira do sério pra ver...
QuandoTIVERfilhosvaiSABERCOMOÉ,

Dia a dia, a vida saindo das artérias. Dia a dia, a jugular em risco.

Não sabia que filhos precisam crescer - independente de -, nem sabia que ela precisava crescer, colocar a si mesma nos lugares certos da alma.
Nunca. Jamais.
Agora era o tempo deles, como lhe dissera a avó. Transformara-se paulatinamente em personagem de histórias alheias.

Figurante, um dia parou.Silenciou. Correu.
Saias rodadas, decotes, cor nos cabelos.

Família, filhos e amigos finalmente viram as felizes imagens do salto em queda livre.
Muito LIVRE.



DESACERTO



Tudo no lugar: asséptico. Casa cenário.
Não pessoa, mas personagem, se comunicava assepticamente também.
Autossuficiência e ter razão lhe bastavam: detergentes.

Eu eu eu eu eu eu...
Faltavam-lhe no léxico outros pronomes...
Pela ausência morfológica, ausente de partilha.
Convivência sim, comprometimento jamais.
Culpa da Assepsia.
Dia a dia, a vida saindo das artérias. Dia a dia, a jugular em risco.
Nem sabia que pessoas precisam minimamente de suor e pó. Não. Nunca.
Detersivo, descaracterizava e corroía quaisquer faces, falas, sensibilidades
que lhe trouxessem ruído para as cenas cotidianas.
Sujeira jamais.
Afinal, bastava-se a si mesmo.

Criador dos enredos, disse um dia: corta!
Pulsos rasgados. Sangue.
O corpo foi encontrado numa calçada em absoluta desordem.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Vazio






Espaço
das potências energéticas
e flutuações quânticas
que se pode
transformar
em
verbo.




"... o tempo, o tempo, o tempo e suas mudanças, sempre cioso da obra maior, e, atento ao acabamento, sempre zeloso do concerto menor, presente em cada sítio, em cada palmo, em cada grão, e presente também, com seus instantes, em cada letra desta minha história passional, transformando a noite escura do meu retorno numa manhã cheia de luz..." [Lavoura arcaica]

Tempo e aprendizado me levaram à escrita. Muito tempo. Tempo perdido. Tempo que corre. Vida que leva.
Imagens fônicas e gráficas que acompanham as imagens do cotidiano.
Nada além de querer, como Fernando Pessoa, [alcançar] "todos os sonhos do mundo"...
Rosane Gomes
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