terça-feira, 24 de agosto de 2010

CRÔNICAS DE SOLIDÃO II







Benedito

A mão passa na aspereza. 
O verniz que se foi. Não. É a árvore que regressa.
(...)"
(Carlos D. de Andrade, "Indicações" - em A rosa do povo)

"Eu o estudo desde longe, porque somos diferentes/Ele cresceu com os tempos/ 
Do respeito e dos mais crentes" (José / Piero – Vs. Nazareno de brito)



Garrafeiro das antigas, estacionou o carro de madeira, empurrado, todos os dias, com esforço.
Desavisado de sua não pertença ao lugar, pediu café, que lhe foi servido com biscoito, copinho de água com gás, e desadoçante má vontade. Espantou.
Primeiro achou que lhe davam cachaça, depois sentiu as bolhinhas gasosas.

Luxoso! Como estava sendo bem atendido! Tinham percebido que era homem de respeito (valera a pena usar camiseta não rasgada naquele dia). Ê, inocência...

Então se alargou: palavras, palavras, palavras. Abundantes palavras. Carecia: compulsivamente.
Na delirante candura, todos eram camaradas.

Todos (com risadas de canto) eram atentos à contação de sua história pessoal - das dores e melancolia da vida inteira que desenhavam as rugas e sulcos de seu rosto. Havia nele a urgência de contar, sim, como havia. Precisava do verbo para segurar o fio de vida que lhe restava.

A cada gole breve de café ou a cada frase, um sorriso sem retorno, um outro correspondido por culpa católica, alguns atirados ao ar. Ele brilhava suor de alegria.

Com roupas simplórias, cheiro de asfalto, rosto intenso - fazia da loja de conveniência sua sala de análise. O balcão era o divã.
precisava precisava precisava

Seu barulho incomodava atendentes e consumidores. Se irritavam.
Era uma agonia...
O velho falava repetidas vezes: Você não sabe o que é andar na esteira por nove minutos! É…! Não é mole não! Você já fez esteira? Coisa muito modernosa. O doutor consegue ver o coração da gente.

E contava sobre o remédio que, descuidado, poderia ter tomado duas vezes: Acho que tomei o da pressão duas vezes, tô tontim, café ajuda.

E falava da prima: minha prima, fez a mesma coisa, menina!? E foi parar no posto de saúde. Perigo, hein?

E falava do nada repetidíssimas vezes: éavida, éavida, éavida, éavida, éavida…

Falava pro vácuo:

A cada dia, quando voltava para casa, tirava o peso da carroça e o das angústias - contava a uma senhora com olhar de vou-pegar-doença-de-pele.

Filhos, sumidos no mundo - dizia à balconista com olhar de vou-ter-de-limpar-o-suor-do-balcão.

A mulher, companheira de 40 anos, perdera para os mesmos médicos negligentes com que ele se tratava - confidenciava a um rapaz de olhar vou-dar-um-chega-pra-lá-no-mané.

Ele era um solitário que optava por se distribuir na rua na esperança de pescar uma alma que fosse para compartilhar sua existência. Queria ouvidos, sorriso, conversa e não a esmola que uma enricada lhe ofereceu para se livrar da incomodante figura.

Terminou o café, comeu o biscoitinho grátis, achou graça da água oferecida num copinho de cachaça Coisa de gente fina, né filha? A jovem assustou com possibilidade de misturar cheiro de Channel com odor de sujo suor.

Sua vontade de dividir a vida era inconveniente.
E ele nem percebeu.
Não percebeu que seus relatos sufocavam o egoísmo dos convivas.
Absurdo se misturar com gente de bem.

Ele saiu feliz - O café é caro, mas... gente fina! Acho que fiz amizade com aquela
Ele descansou da tristeza.
Pegou a carroça, saiu cantando: Aaai, corra e olha o céu, que o sol vem trazer bom dia!
(belo Tenor)

Para os que ficaram - alívio com a saída do discrepante incômodo. 

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Nota da autora: Católicos, evangélicos, espíritas, não importa. Não conseguiram se lembrar de algo que resume TODA a Bíblia: "Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo."
Eu estava lá, assistindo, daí nasceu esta crônica. E fui "o silêncio de São Paulo diante da chacina [afetiva]." Não me senti culpada. Senti minha incompetência mesmo. De fato, vivemos a era do Déficit Atroz de Atenção. Olhares simpáticos, atenções a quem não conhecemos, sorrisos sinceros para quem se nos dirige nada custa. Não nos custa um centavo. E, muitas vezes, sem o saber, salvamos uma vida.
Adoro e copio a frase de Clarice: Amém para nós todos.

Rosane Gomes

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