quarta-feira, 1 de setembro de 2010
CRÔNICAS DE SOLIDÃO III (Retorno à Caverna)
BORIS
"Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade."(Eclesiastes 1:2)
" E ele lhes cumpriu o seu desejo, mas enviou magreza às suas almas."(Salmos 106:15)
Percepção delirante, alucinações na forma de vozes que o acompanhavam naquela atividade repetitiva. Estava mesmo preso a um estado de natureza humana, encerrado em morada subterrânea e cavernosa com apenas um pequeno acesso à luz. Desde sempre, o pescoço e as pernas presos de modo que permaneciam imóveis; só via os objetos que lhe estavam a um palmo dos olhos. Preso por computadores que lhe permitiam ligar-se ao mundo inteiro, não podia voltar o rosto.
Atrás dele, a certa distância e altura, um fogo ofuscante; entre o claro e o cativo, um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro que não lhe permitia ver totalmente os aparentes bonecos de mola que pensava poder manipular.
Tic Tac, Tic tac, tic tac. Único som real: o tempo fugindo.
Virtualidade. Era esta sua dependência. Desta forma colocado, não poderia apenas ver de si mesmo e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas.
Tic tac, tic tac, tic... ("Mas ele foge: irreversivelmente o tempo foge")
Perdera o contato com a realidade, experimentando ideias bastante irracionais, revestidas de uma fala aparentemente lógica. Convencia a todos os outros cativos de suas verdades distorcidas.
O ar seguro (escondendo os grilhões) mascarava seu empobrecimento afetivo. Delírios e delírios provocavam uma crença em si mesmo; ele era a sua religião.
Pregava aos outros cativos, certo de que o perseguiam. Acreditava ser atormentado, seguido, enganado, espionado ou ridicularizado. Acreditava também que certos gestos, comentários no escritório, tarefas efetuadas pelos outros, eram dirigidos especificamente a ele.Tinha desatinos de grandeza.
De fato não cria que houvesse nada de real e verdadeiro além das figuras-desvario que desfilavam entre as baias e divisórias que o rodeavam.
O que aconteceria caso se livrasse num átimo das cadeias de erro em que laborava?
Na hora mais imprevista este cativo foi desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a ouvir e a olhar firmemente para a luz. Nada disso aconteceria sem grande pena; a luz, além de lhe ser dolorosa, o deslumbraria, convidando a distinguir seres e objetos. Antes avistava somente sombras.
O que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só vira fantasmas e que, agora, empurrado para a realidade, enxergaria com mais exatidão?
E se, alguém, apontando-lhe as figuras que lhe desfilavam anteolhos, o coagisse a dizer o que eram?
Seria sua grande confusão. Poderia fazê-lo sem dor?
Então aconteceu.
Persuadiu-se de que o que antes vigiava era menos verdadeiro que os objetos ora contemplados.
Com dificuldade, desviava as pupilas doloridas para as sombras que antes lhe eram confortáveis.
A realidade o fez subir por caminho áspero e escarpado, para somente o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol. Dava gritos lamentosos e brados de cólera, apesar da notável sedução sentida diante do esplendoroso ambiente.
Precisaria de algum tempo para afagar a claridade.
Finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplou mais facilmente os astros da noite. Depois, o pleno resplendor do dia.
Recordou-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e de sua ilusória e hiperbólica sabedoria; se deu parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a perda do poder sobre outros.
Se na claridade recebesse elogios, honras e recompensas por mais prontamente perceber as sombras - sendo o mais hábil -, tanto melhor. Afinal, guardava na alma o cativeiro. Este homem teimava em voltar às primeiras ilusões. Mas os grilhões não estavam mais ali.
Vencido e derrotado, levantou-se. Xingou adeus definitivo aos colegas de trabalho.
(Soube-se que foi tratar da Personalidade Esquizotípica)
Alívio no delírio.
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