segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

No Sétimo, O Descanso



(frame do vídeo ARK, by grzegorz jonkajtys - http://vimeo.com/3116167)



“Brigam Espanha e Holanda/Pelos direitos do mar/
Brigam Espanha e Holanda, porque não sabem que o mar.../
É de quem o sabe amar” (Milton Nascimento - Leila diniz)

"Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito é verde".
Cânticos 1:16



Aquele que me balança os navios
tem morada distante

Eu nada te peço, Deus,
senão a continuidade do tempo.
E, em que pese a distância,
assinatura da derrota - consumida, mas recuperável -,
traz um sinal de beleza na minha face
e me responde:

Que faço eu para aconchegar oceanos?
Como aproximo chão e chão?
Qual fórmula equaliza
amores filhos, amores mães, amor-amor?

Ventos do sul me levam
Vozes quentes e sudestes me prendem

Que faço Deus?
7 orações?
7 partidas?
7 chegadas?

Olho para fora, não vejo paisagem.
Tenho apenas a janelar memória: peixe na panela, arroz, pratos vibrando a comida com cheiro gostoso de afeto.
Antes, a vara, a pesca da madrugada sobre o mar aquecido de alegrias refeitas de sonho bom

Que faço eu Deus?
fala comigo!
7 orações?
7 partidas?
7 chegadas?

Qual caminho me leva com segurança e sem bússola
ao porto convicto?

Me diz, pai!
fala comigo!
dos naufrágios eu sei,
Você sabe.

Mareante,
já engoli a água,
já cuspi mágoa,
caí.
Quase afoguei.

Os ventos estão gelados - sinto frio, dor

Agora faz!
Isenta a distância.


Aquele que balança os navios
Saiu do mar,
Está na areia à espera.
Ficou sem embarcação...

Me traga um veleiro então.

Eu vou.


Rosane Gomes

sábado, 26 de novembro de 2011

Deserção




Para minha amiga Christina


Ela vivia entre halteres na academia e fardos na vida. E ainda se preocupava com os encargos de ombros outros. Distraía-se levantando pesos. Na hora imprecisa, de músculos já relaxados, despencou - cinco andares - no chão: uma carga vermelha e fria, que um faxineiro cuidou de limpar para manter a assepsia cotidiana.
Restou no piso a cicatriz invisível da dor muda, dormindo inútil. Esquecida.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Praticidade (Com muito afeto, claro)






- O que vc acha da aliança deste site, amor?
- Vamos comprar a do outro.
- Você não gostou? Tá caro?
- Não. Fica mais fácil - é quase igual à que eu já tenho. Daí só compro uma...

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Desalento






UOU! Ela tirou o casaco.
Não era stripper. Colega de trabalho, apenas estava com calor.
Mas quem ficou quente foi ele.


Rosane Gomes

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quem come de tudo está sempre mastigando...








Separava cuidadosamente os pedaços de inúmeras frutas podres. Não, leitor! Não era mendigo. Tudo acontecia numa pomposa cozinha .
Nem mesquinho. Os fragmentos de frutose caíam no liquidificador com gotas de gulodice.

Persuasivo





Suas palavras saíam sarcásticas. E mataria quem desvendasse a tristeza mal escondida no olhar irônico.


Rosane Gomes

LEGADO






“Eu nunca errei!”, dizia para a filha. “Se não for do meu jeito...”

Seu amor era escambo.O único deslize foi deixar uma carta afetuosa (jamais arrependida) para a filha no colchão-cofre em que jazia. Orçamento resolvido. E corações em decomposição.


OU

A mãe dizia não cometer erros.Seu amor era escambo. O único deslize foi deixar uma carta afetuosa para a filha no colchão-cofre em que jazia. Orçamento resolvido e coração estupefato.

(Quer saber, leitor? Escolha a sua versão. Não importa. O resultado foi o mesmo: do lado de lá e do lado de cá, almas necrosadas)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

ORDEM DE DESPEJO






Ele incompreendia seus humanos. Tinham um comportamento bizarro. Por que não reconheciam nas lambidas, nos pulos e no carinho com as patas o amor? A eles oferecia tanto espaço... Aceitava qualquer coisa - um pedaço de pano era brinquedo; chão, descanso. Biscoito ou comida crua eram alimento - até pedaço de papel valia.

Mas se apartaram dele. A coleira inútil velou o pescoço extinto. Restou um apartamento oco. Surdo.

Rosane Gomes

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO I






HOUSEWIFE

Palavras, palavras, palavras. Nada além de palavras. Ela adorava falar: no mercado, na feira, nas lojas - compulsivamente. Todos eram bons psicanalistas. Todos (com risadas de canto) eram coniventes com as dores e alegrias que preenchiam seus dias fragilizados pela inércia da vida inteira. Havia urgências, sim, como havia. Precisava do verbo para apalpar a vida.

A cada passo, um sorriso sem retorno, um outro correspondido, alguns atirados ao ar. Ela precisava.

Sempre muito arrumada, perfumada, seus brincos balançando, também fazia do caminhar nas ruas uma conversação com o mundo.

precisava precisava precisava

Os vizinhos não entendiam muito o porquê de tamanho contentamento. Se irritavam.
Era uma agonia...

E, a cada dia, entrava em casa, tirava os luxos.
Perfume, ausente.

Enfim, ela podia oferecer sorriso fraco e franco aos filhos, ao marido. E um presente para a Solidão.

Alívio do silêncio.

Rosane Gomes

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

EX more






“Em família, sem dizer nem combinar a gente determina quem são os maus, quem são os bons. Prende neles uma tarja e todo mundo acredita:eles também.” (Lya Luft)

I

E ela que pensara ter a vida inteira o próprio nome,
sentia o peso do incômodo presente: nome + sobrenome = parentes

Aparentava paz que lhe era verossímil,
não autêntica.
Tirava-lhe os pulmões, as cordas vocais e as pernas:
precisava da fala autônoma, de correr e de inalar um mais-que-contentamento.

Não pretendia a loucura,
nem muita excitação.
Contudo lhe era inviável a letargia tépida em que se metera.

Inadmissível se ausentar da alegria e da liberdade.
Identificara-se e se revoltara com o que lera de Pessoa na noite anterior: “é este estar entre, /Este quase, Este poder ser que. Isto.'

Ainda assim se sentia presa às protocolares reuniões de família enfadonhas
- nelas residia sua estranha forma de se aquecer.

Ela se aconchegara ao marasmo.

II

Fernanda queria mesmo
fazer uma conta de chegar
para conseguir o tal equilíbrio que as avós e tias tanto anunciavam em sua infância
(eram elas submissas felizes).

Difícil - o cotidiano era incontrolável: não vinha com recurso avançar/recuar.

Não dava pra passar a borracha nas rugas
não dava pra remover as rusgas
não dava pra desfocar o exato-latente momento das mágoas.

Num súbito consentimento de impotência, lamentava:
possível sentir sutilezas de felicidade; impossível prendê-las em imagem.

(Retina devia ficar na boca: a alegria seria devorada e guardada
no corpo,
no ventre,
como quem tem uma constipação)

E tudo é tão, não só, mas também, apesar, até que
E pois, e tal qual, e quanto, conforme, se bem que.
E simplesmente assim como.

III

Entretanto Fernanda se garantia na insistência:

A vida borra
distorce
gira
recorta
parece que vai diminuindo aos poucos.

Mas intriga, hipnotiza, atrai e cativa:
filhos,
amores,
pôr do sol,
luar na praia do Leblon,
café expresso,
cheiro de livro novo,
olhares que se cruzam,
arroz com açafrão,
vidas que se entrelaçam,
abacaxi com canela,
novos amigos,
amigos de sempre,
sorvete de chocolate,
aconchego de filho,
pão quentinho,
gargalhadas,
suco de melancia,
a paz de estar só e bem,
- ou a alegria de estar acompanhado -,
pizza sem culpa,
horas em uma biblioteca,
cheesecake,
cheiro de chuva...
...e seguir a vida.
Apalpar a vida.
Compreendê-la.


Compartilhar:
fraqueza,
riso,
saudade,
alegria,
preguiça,
paixão,
receio,
conhecimento,
liberdade
paz.

Sim e sim. Um dia a matemática funcionou.

Trazer de volta para o corpo os pulmões, as cordas vocais e as pernas era o que de mais precioso poderia fazer.
Era sua esperança de branda euforia.


E equilíbrio.

PÁTHOS








"Um Cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco"
(Milton Nascimento e Leila Diniz)

Estar distraído.
Abrir o coração
Abrir o jogo
Arregaçar as mangas
Iniciar.
Agarrar com unhas e dentes
Não desistir
Desnortear-se

Estar preparado para uma qualquer situação.

Arrancar cabelos,
Desesperar-se.


Bater na mesma tecla
Insistir.
Baixar a bola,
Acalmar-se, ser mais comedido.

Dar o braço a torcer

(Contar um segredo...)

Dar com o nariz na porta

Engolir sapos
Fazer algo contrariado
Dar o braço a torcer

Avalizar o afeto

Ficar de novo com a cabeça nas nuvens

Distraído,
acabar com a corda no pescoço,

Aperto no coração,
Agonia,

E não poder fazer nada
Morrer, fenecer

Lavar roupa suja
Ficar de novo com a cabeça nas nuvens

Estar distraído.
Perder as estribeiras
Desnortear-se.
Expor os fatos.

Procurar uma agulha num palheiro.
Tentar algo quase impossível.
Receber um balde de água fria.

Sentir, tocar,
Ficar de novo com a cabeça nas nuvens.

Estar distraído.
Abrir o coração
Abrir o jogo
Arregaçar as mangas
(Re)Iniciar


O amor é tautológico.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO XI - Produção na estrada


"Não digas ao teu próximo: Vai, e volta amanhã que te darei, se já o tens contigo.”Provérbios 3 : 27, 28


Cumpria a ela fazer agir:

Vamoslá:procurarcasacomtextura
e
vermaisalgumasopções
deacordocombriefing
Lembrandoquenessanovacasa
temqueterjanela
ahistóriasemantém
ela
senteovento
nãopodeserumacasavelha
Precisamospesquisar
umanovacasa
comumafachadacolorida.
temosquebuscarumjardim/pomar
Quantosvaiprecisardeverba?
ou
acertamosnavolta?

Falava 40, 50 frames por segundo.
Não todos entendiam o veloz dialeto.

II

No definitivo dia,
profusão de mãos braços cabos refletores e gente
e uma Canon captando a realidade tão necessária ao consumo humano.

Set armado, circo armado:
modelo, de aparência inigualável, contrastava com a crueza e o breu locais -
e ELA estava lá, comandando o movimento e os esforços de vários para que a beleza fosse levada a milhares.

câmeração!, disse o diretor,
fazendo cumprir o obrigatório ritual instantâneo de luzes caras bocas cabelos e pernas.

O som alto abafava o futuro trágico da estrada.

Na locação, um tudo-lindo de horrorizar o acontecer iminente:
Crash.
Cachorro no chão,
Dois no chão,
a estrada cheia de faróis - lentes a realçar
os corpos sangrados de betume e dor.
Tudo fora de quadro e cujo destino não era o glamour do vídeo, mas a espera de ambulâncias lentificadas.


III

Então, ela transgrediu.

Em que pesasse ser figura essencial,
escapou do mundo encantado
e mergulhou na áspera realidade.

Neste momento, ela, com os braços,
disse ação.

Foi para o asfalto negro-ríspido
Nada nude...
E parou o caminho público.

Apesar de motoristas reclamantes, não esmoreceu - interditou a falta de auxílio mútuo:
pediu triângulos sinalizadores e atenção para os que apenas queriam atropelar a dor alheia.

Tirou das entranhas a valentia.

Produziu pessoas e atitudes que salvassem vidas
produziu a ambulância
o socorro
ela produziu nas almas sensibilidade para um acontecimento sem grife.

(que belo take!, diria o diretor de cena, caso estivesse ali)

Na estrada escura fez também direção de fotografia.
(Deus estava lá. Ela pediu, Ele veio)
e garantiu a sobrevivência dos desconhecidos
que sequer sabiam
que alguém,

De longe,
fez o melhor trabalho de sua vida.

É.
“O solidário não quer solidão..."


Rosane Gomes

quinta-feira, 3 de março de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO IX - Paulinho da Viola Revisitado




"– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
– Adeus!
– Adeus!" (Paulinho da Viola)



Entenda,
O que os meus olhos veem
está em outro lugar.

Não sei o som do seu sim,
não,
sei
entendo,
gostei,
"rs" é deboche? alegria? aprovação? nada?
Não sei a cara da sua saudade
nem a do seu euteamo

às vezes rejeito o seu :) - inalcançável

o ;) pode ser uma ironia?
Seu rosto é apenas imagem
num quadradinho pequeno -
uma janela sem vidro -
sempre a mesma expressão...
(e se esse seu sorriso digital aparecer num dia pálido?)


assim ficamos fragmento
assim ficamos no “até mais”
“a gente se fala a gente se vê”


O que faz dessa realidade de pixels e teclas
- sem gosto, sem cheiro, sem pele -
algo tão fácil
e tão pouco íntimo,
tão atropelado?

tudo é rápido
tudo interrompe
e os nossos sinais - que antes interrompiam o Tempo -
agora caem...


“Você não está conectado à internet
Você não está conectado à internet
(Ativar AirPort...)
Você não está conectado à internet
(Ativar AirPort...)
A conexão a internet parece estar desativada.

diagnóstico de rede...

eles caem,

ELES CAEM

na

solidão.

status, away...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VIII


E esta minha ternura,Meu Deus,
Oh! Toda essa minha ternura inútil, desaproveitada!... (Mário Quintana)
"deu peso ao vento, e tomou a medida das águas" Jó 28:25


No entressono da manhã, inquietou.
Aquela forma de existir ainda não lhe servia.

Os objetos da casa, os quadros vistos pelas janelas tinham adquirido tons de cinza: tinham perdido o alaranjado sobrecomum do pôr do sol e também o azul entre laranja e vermelho que parecia anunciar a vinda de anjos.

Queria ver o azul também o verde também o vermelho.

Queria a paleta de cores básicas para poder misturá-las e dar tons novos à vida tão cotidiana. Estava só, mais que isso, solitária e invisível entre mobília e afazeres.

Teimou em existir.Uma teimosia audaciosa e lúcida.
Era uma fome quase perigosa.

Precisava de uma tal crueldade que ela compreendia como um apetite de vida.
Se a crueldade - aquela crueldade - não sobrepujasse a sua contínua benevolência , o espetáculo, que estava por tempos preparado, não aconteceria.

Não era perversidade, tampouco dilaceramento de alma ou da carne. Era o desejo de potência: levar suas forças ao ponto máximo. Seria existir de fato e em tudo, com tudo e sem adversativas. Sabia que crueldade significava fazer o sangue correr. O pulsar necessário.

Ela precisava afastar de si qualquer desejo reminiscente de morrer.

A crueldade era, portanto, algo bom. Jamais se oporia aos afetos. Era um dos tipos de afeto.

Precisava também escapar da culpa e, nesse caso, ser cruel era esteio e auxílio. Afugentaria o envelhecimento - e a fraqueza.

II

Colocou-se, assim, arrumada;
“dialogar com espelho é bom”.
Correu para a rua com as idéias implacáveis dentro de sua carteira.

Sabia que precisava esvaziar pensamentos para preencher-se de amor -
meio para a sua bizarra estrada amorosa.

Dia de verão, sentou-se num banco da praia, seguindo o ritual diário de ser.
Paralisava.

Mesmo assim, não perdera capacidades de sonhar. Era o que mais fazia.
Inventava paisagens, coloria cenários onde estaria - com certeza - profusa.

Conhecia sua ausência de atributos certos para aproximar os homens que tanto olhava sem tocar, mas seu pincel poderia produzir uma figura masculina - e humana - boa, companheira, amável... Afinal, experiência lhe ensinara que nada seria real até que se desenhasse de sonho.

Agora, a voz das ondas brancas a convidava a desejar ser visível e sedutora. As lambidas do mar na areia eram um chamado sensual da alegria.
Tentou empregar convenientemente sua forma comedida de sedução. (Se falhasse, seria muito mais seguro optar pela crueza).

Permaneceu sentada no banco da praia, olhando, apenas olhando. Faltava-lhe, ainda, o necessário para se comunicar com o mundo.

Conseguiu finalmente alcançar, não pessoas, mas os tons do sol, que já se punha, na paisagem em movimento.

Gente pra lá gente pra cá.
Ela se mantinha imóvel.

O impulso era de correr, sair pelas areias -
 parecia mais fácil em imaginação.

“Quero o concreto”.

Um homem sentou-se ao lado. Ela fez um sorriso matreiro.
Ele estava ali apenas para amarrar o tênis. Reconheceu, porém, a figura sempre desigual e interessante que encontrava no café da livraria. Ofereceu a ela um carinho com os olhos de azul-mar.

Desistiu de correr. Ficaram, os dois, em silêncio. O céu tocando o mar no horizonte era o anúncio de aproximação.

Ela aceitou o susto de aconchego. 
Levantou-se do banco, no já escuro que convidava a voltar ser mobília da própria casa.
Não disse adeus. Pronunciou um até amanhã tímido e recolhido.

Deu o passo necessário à liberdade de amor.
O pulso de sangue finalmente se fez verbo. 
A crueldade - a peculiar - atirou às ondas.

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Nota da autora: Ofereço esse pequeno conto àqueles que viveram e vivem intermitentes solidões. É difícil encontrar amor. A paixão, páthos - loucura que leva à paralisação ou ao descomedimento - é fácil de achar. Mas quando se acha se perde. Perdemos a nós. O amor, mistério dos mistérios, parece muitas vezes tarefa de arqueólogos. Manter a pulsação do afeto por anos é o que gosto de chamar de verdadeira arte poética.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VII







Inconsciência


Estava incongruente com a vida.Não se cabia mais.

Palavras lhe chegavam como flechas.
Quando as torturas em que se metera na vida iriam findar?
Ela se perguntava por que aceitara, desta vez, aquela bengala.

O objeto se revelava, dia a dia, sempre inútil, absolutamente inútil.

Com a antiga podia andar, com limites. Com a nova, não podia se mover: era uma bengala com grilhões.

Tinha medo de perdê-la; afinal, sozinha não aprendera a tatear o chão.
Não o chão das ruas (embora estes também), mas o terreno arenoso de alma alheia.

Bem dizendo, perdera um pouco de suas características para ser recipiente confortável.
De outrem.

A bengala volátil; ora se mostrava sólida, ora quebradiça, muitas vezes explosiva.

Difícil viver assim.

Sentiu que escolhera a agonia e a constante preocupação com seus passos- eram seus melhores inimigos - e não conseguia se liberar deles.

Não sem bengala.

Passava noites em claro, manhãs irrequietas - e sempre se perguntava “o que estou fazendo comigo?”

Inútil questão. Desanimada, tentava responder:

“Quando tudo estiver em acordo e houver harmonia nas minhas faculdades sensitivas e ativas , entrarei numa natureza superior, uma via talvez ainda não satisfatória. Contudo, esse acordo me fará sentir a existência de uma outra felicidade, uma outra sabedoria, uma outra imperfeição, ultrapassando, assim, a maior das alegrias possíveis de alcançar.”


Mas seu estado de alma, agonizante, impedia-lhe a percepção da própria resposta.
O imaterial suporte estava ali a fazer ruídos no pensamento.

Importava perceber, porém, que sua submissão ao objeto, bem como a rejeição por ele, eram atos de liberdade.
Tal submissão, não a reduzia ao nada....

No entusiasmo, quando a bengala trazia a tranquilidade de andar um pouco e somente um pouco, já aí nada havia de livre: coexistia uma falta de ar.

Desventura: não conseguia apartar-se, desapegar-se.  

A questão mesmo era saber se a via da vontade racional (largar a bengala ou transformá-la) poderia coexistir com a via dos seus sentidos frágeis e carentes da aprovação de cada passo...

Pensou numa extrema via , cujo princípio seria desumanizar-se. Infelizmente essa seria uma outra forma de prisão:a apatia.

Com extremo desejo de ter a alma em repouso, pousou a bengala.

Primeiro, encostada num canto.
Depois, atrapalhando, no chão, a passagem.

Até se desmaterializar totalmente.

Farpas pontiagudas perderam o som. A bengala nada lhe dizia. Não mais.


Na memória, apenas aroma de algo que um dia considerara amor.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VI - Desvario





“Sinto no meu corpo/ A dor que angustia/ A lei ao meu redor/ A lei que eu não queria...” (Estado Violência, Charles Gavin/ Titãs)
"Miserável que sou!Quem me livrará do corpo esta morte?" Romanos 7:23
"Ela me amava pelos perigos por que eu havia passado e eu a amava por ela ter se compadecido de mim" (Othello, Ato I)



Vermelho, verde, azul, amarelo...
O flâneur cambaleava pelas vias sem destino, com apenas meia percepção visual.
Qual seria o rumo de cada rua ? Os sentidos estavam enganosos: não conseguia experimentar as formas várias e as deformidades dos prédios sempre desarmônicostampouco aquele trecho tão familiar da cidade o afetava como noutros dias.
Mas continuava um flâneur.
Verde, azul, vermelho, amarelo... Uma compulsão por cores, em estado de quase epilepsia.
...
Melancólico, entediado e convulsivo, percebia o enquadramento diferente. Era de dentro ou de fora?
Cidade ou ele mesmo? Virara passeador de sua arquitetura corporal?
...
Amarelo, verde, vermelho, azul...
Luzes da cidade a trazer seus demônios - e não eram poucos.

Embora preocupado com o último moleque a passar, procurava desconsiderar pessoas, os faróis parabólicos dos carros e os batimentos cardíacos da noite. Barulhos o confundiam; escassez de memória atormentava.

O que eu fiz!?
...

Havia uma voz no amarelo-vermelho-azul-verde que o acompanhava, dizendo: culpado.
Errâncias urbanas não o incomodavam ou interessavam como outrora. Interagia apenas com as sonoras luzes a lhe dizerem: “há algo horrível e incurável, acima de qualquer noção humana, no seu ódio latente dirigido aos transeuntes" . Novamente ouvia: culpado.

Amarelo, azul, verd....
Então viu somente o vermelho, apesar da ausência de ondas de luz necessárias para percebê-lo. Deu-se conta do sangue nas mãos. A voz escuro-escarlate insistia: culpado.
...

Paixão antiga o levara ao desespero de aceitar que outros lhe regessem a vida.
Paixão antiga o tornara um executor de julgamentos alheios. Othello tatuado de Iagos. Era Iago do seu próprio Othello.

II

Mãos de sangue.
Ficou por momentos entorpecido pela singular e assustadora imagem.
Matara? Quem? O rubro líquido que escorria entre os dedos era seu?
Afinal, acordou do entressono andarilho.
Afinal, começava a recordar.
A cor resistia: culpado.
...

Ficou a flanar pela arquitetura inexata, que com ele se comunicava advertindo sobre a insensatez de se deixar levar afeições coléricas.
Sem poder retornar para qualquer casa, mesmo a dos pais, restou-lhe a si mesmo.
Sim, era melhor ser o antigo flâneur. Sim, melhor afagar os concretos disformes da Lapa.
Ajoelhou, sentou, dormiu exausto entre ratos mortos e vivos.
Seguranças de casas noturnas fizeram vista grossa. Caíra no lugar-comum; durante um mês, ele sempre cambaleara por ali.

Fez-se o dia, sem azul céu, sem branco-frescor de-neblina, sem verde-jardim.
Apenas o alaranjado do sol.
....
Levantou-se, chutou o jornal em que viu a notícia:
Mulher é assassinada na Urca

A polícia registrou um possível crime passional no começo da noite desta segunda-feira  na Urca, Rio de Janeiro. Acácia Bellinaso, 47, foi encontrada agonizante e desorientada; sem evidências de violência no corpo, mas com o rosto revelando muita dor. Uma faca foi encontrada ao lado da mulher.
A vítima ainda foi socorrida e levada ao hospital onde morreu.
Acácia estava bem, estabilizada - disse um dos médicos de plantão. Estranhamente morreu... o coração simplesmente parou. Parece ter morrido de tristeza... Não tenho dúvida de que houve violência; os sinais eram de sofrimento intenso, mas nada se pode provar, pois não há marcas visíveis.

A polícia ainda não tem pistas sobre o suposto assassino.
....

Deu-se conta.
Passou por um boteco que tocava Chico:

"Te perdoo/ por fazeres mil perguntas/que em vidas que andam juntas/ ninguém faz/Te perdoo/ por pedires perdão/ por me amares demais/Te perdoo/ por ergueres a mão/ por bateres em mim/Te perdoo porque choras/ quando eu choro de rir/Te perdoo por te trair"
O boteco também lhe dizia: culpado
Nada mais podia fazer.

Continuou a vagar pela noite - não mais andarilho.
Fugitivo.
Finalmente cores ganhavam real significado e repetiam: culpado.

Correu para um beco escuro e se escondeu. Não tinha como tirar o sangue da roupa e das mãos.
Não tinha como limpar o sangue dos olhos. Jamais se perdoaria pela violência da qual tinha agora embaçada lembrança. No reduto imundo do seu recolhimento, as cores sumiram, dando lugar a um negro espaço que ecoava: culpado. Pudesse apunhalar o próprio corpo, o faria, mas não teve força para isto. Encolheu-se em posição fetal e se perguntou, na esperança de uma, talvez, libertadora punição:

Quando apareceria o som-sirene-vermelho-viatura?
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