quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VII







Inconsciência


Estava incongruente com a vida.Não se cabia mais.

Palavras lhe chegavam como flechas.
Quando as torturas em que se metera na vida iriam findar?
Ela se perguntava por que aceitara, desta vez, aquela bengala.

O objeto se revelava, dia a dia, sempre inútil, absolutamente inútil.

Com a antiga podia andar, com limites. Com a nova, não podia se mover: era uma bengala com grilhões.

Tinha medo de perdê-la; afinal, sozinha não aprendera a tatear o chão.
Não o chão das ruas (embora estes também), mas o terreno arenoso de alma alheia.

Bem dizendo, perdera um pouco de suas características para ser recipiente confortável.
De outrem.

A bengala volátil; ora se mostrava sólida, ora quebradiça, muitas vezes explosiva.

Difícil viver assim.

Sentiu que escolhera a agonia e a constante preocupação com seus passos- eram seus melhores inimigos - e não conseguia se liberar deles.

Não sem bengala.

Passava noites em claro, manhãs irrequietas - e sempre se perguntava “o que estou fazendo comigo?”

Inútil questão. Desanimada, tentava responder:

“Quando tudo estiver em acordo e houver harmonia nas minhas faculdades sensitivas e ativas , entrarei numa natureza superior, uma via talvez ainda não satisfatória. Contudo, esse acordo me fará sentir a existência de uma outra felicidade, uma outra sabedoria, uma outra imperfeição, ultrapassando, assim, a maior das alegrias possíveis de alcançar.”


Mas seu estado de alma, agonizante, impedia-lhe a percepção da própria resposta.
O imaterial suporte estava ali a fazer ruídos no pensamento.

Importava perceber, porém, que sua submissão ao objeto, bem como a rejeição por ele, eram atos de liberdade.
Tal submissão, não a reduzia ao nada....

No entusiasmo, quando a bengala trazia a tranquilidade de andar um pouco e somente um pouco, já aí nada havia de livre: coexistia uma falta de ar.

Desventura: não conseguia apartar-se, desapegar-se.  

A questão mesmo era saber se a via da vontade racional (largar a bengala ou transformá-la) poderia coexistir com a via dos seus sentidos frágeis e carentes da aprovação de cada passo...

Pensou numa extrema via , cujo princípio seria desumanizar-se. Infelizmente essa seria uma outra forma de prisão:a apatia.

Com extremo desejo de ter a alma em repouso, pousou a bengala.

Primeiro, encostada num canto.
Depois, atrapalhando, no chão, a passagem.

Até se desmaterializar totalmente.

Farpas pontiagudas perderam o som. A bengala nada lhe dizia. Não mais.


Na memória, apenas aroma de algo que um dia considerara amor.

4 comentários:

  1. Eu li duas vezes seu texto, porque é muito belo, eu admiro vocês escritores, que tem essa sensibilidade ao escrever, que vem da alma toda essa poesia, belo seu texto.

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  2. Belo e profundo. Parabéns.

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  3. Nossa! Tudo a ver comigo, acho !
    Você é genial !

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