quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VIII


E esta minha ternura,Meu Deus,
Oh! Toda essa minha ternura inútil, desaproveitada!... (Mário Quintana)
"deu peso ao vento, e tomou a medida das águas" Jó 28:25


No entressono da manhã, inquietou.
Aquela forma de existir ainda não lhe servia.

Os objetos da casa, os quadros vistos pelas janelas tinham adquirido tons de cinza: tinham perdido o alaranjado sobrecomum do pôr do sol e também o azul entre laranja e vermelho que parecia anunciar a vinda de anjos.

Queria ver o azul também o verde também o vermelho.

Queria a paleta de cores básicas para poder misturá-las e dar tons novos à vida tão cotidiana. Estava só, mais que isso, solitária e invisível entre mobília e afazeres.

Teimou em existir.Uma teimosia audaciosa e lúcida.
Era uma fome quase perigosa.

Precisava de uma tal crueldade que ela compreendia como um apetite de vida.
Se a crueldade - aquela crueldade - não sobrepujasse a sua contínua benevolência , o espetáculo, que estava por tempos preparado, não aconteceria.

Não era perversidade, tampouco dilaceramento de alma ou da carne. Era o desejo de potência: levar suas forças ao ponto máximo. Seria existir de fato e em tudo, com tudo e sem adversativas. Sabia que crueldade significava fazer o sangue correr. O pulsar necessário.

Ela precisava afastar de si qualquer desejo reminiscente de morrer.

A crueldade era, portanto, algo bom. Jamais se oporia aos afetos. Era um dos tipos de afeto.

Precisava também escapar da culpa e, nesse caso, ser cruel era esteio e auxílio. Afugentaria o envelhecimento - e a fraqueza.

II

Colocou-se, assim, arrumada;
“dialogar com espelho é bom”.
Correu para a rua com as idéias implacáveis dentro de sua carteira.

Sabia que precisava esvaziar pensamentos para preencher-se de amor -
meio para a sua bizarra estrada amorosa.

Dia de verão, sentou-se num banco da praia, seguindo o ritual diário de ser.
Paralisava.

Mesmo assim, não perdera capacidades de sonhar. Era o que mais fazia.
Inventava paisagens, coloria cenários onde estaria - com certeza - profusa.

Conhecia sua ausência de atributos certos para aproximar os homens que tanto olhava sem tocar, mas seu pincel poderia produzir uma figura masculina - e humana - boa, companheira, amável... Afinal, experiência lhe ensinara que nada seria real até que se desenhasse de sonho.

Agora, a voz das ondas brancas a convidava a desejar ser visível e sedutora. As lambidas do mar na areia eram um chamado sensual da alegria.
Tentou empregar convenientemente sua forma comedida de sedução. (Se falhasse, seria muito mais seguro optar pela crueza).

Permaneceu sentada no banco da praia, olhando, apenas olhando. Faltava-lhe, ainda, o necessário para se comunicar com o mundo.

Conseguiu finalmente alcançar, não pessoas, mas os tons do sol, que já se punha, na paisagem em movimento.

Gente pra lá gente pra cá.
Ela se mantinha imóvel.

O impulso era de correr, sair pelas areias -
 parecia mais fácil em imaginação.

“Quero o concreto”.

Um homem sentou-se ao lado. Ela fez um sorriso matreiro.
Ele estava ali apenas para amarrar o tênis. Reconheceu, porém, a figura sempre desigual e interessante que encontrava no café da livraria. Ofereceu a ela um carinho com os olhos de azul-mar.

Desistiu de correr. Ficaram, os dois, em silêncio. O céu tocando o mar no horizonte era o anúncio de aproximação.

Ela aceitou o susto de aconchego. 
Levantou-se do banco, no já escuro que convidava a voltar ser mobília da própria casa.
Não disse adeus. Pronunciou um até amanhã tímido e recolhido.

Deu o passo necessário à liberdade de amor.
O pulso de sangue finalmente se fez verbo. 
A crueldade - a peculiar - atirou às ondas.

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Nota da autora: Ofereço esse pequeno conto àqueles que viveram e vivem intermitentes solidões. É difícil encontrar amor. A paixão, páthos - loucura que leva à paralisação ou ao descomedimento - é fácil de achar. Mas quando se acha se perde. Perdemos a nós. O amor, mistério dos mistérios, parece muitas vezes tarefa de arqueólogos. Manter a pulsação do afeto por anos é o que gosto de chamar de verdadeira arte poética.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

CRÔNICAS DE SOLIDÃO VII







Inconsciência


Estava incongruente com a vida.Não se cabia mais.

Palavras lhe chegavam como flechas.
Quando as torturas em que se metera na vida iriam findar?
Ela se perguntava por que aceitara, desta vez, aquela bengala.

O objeto se revelava, dia a dia, sempre inútil, absolutamente inútil.

Com a antiga podia andar, com limites. Com a nova, não podia se mover: era uma bengala com grilhões.

Tinha medo de perdê-la; afinal, sozinha não aprendera a tatear o chão.
Não o chão das ruas (embora estes também), mas o terreno arenoso de alma alheia.

Bem dizendo, perdera um pouco de suas características para ser recipiente confortável.
De outrem.

A bengala volátil; ora se mostrava sólida, ora quebradiça, muitas vezes explosiva.

Difícil viver assim.

Sentiu que escolhera a agonia e a constante preocupação com seus passos- eram seus melhores inimigos - e não conseguia se liberar deles.

Não sem bengala.

Passava noites em claro, manhãs irrequietas - e sempre se perguntava “o que estou fazendo comigo?”

Inútil questão. Desanimada, tentava responder:

“Quando tudo estiver em acordo e houver harmonia nas minhas faculdades sensitivas e ativas , entrarei numa natureza superior, uma via talvez ainda não satisfatória. Contudo, esse acordo me fará sentir a existência de uma outra felicidade, uma outra sabedoria, uma outra imperfeição, ultrapassando, assim, a maior das alegrias possíveis de alcançar.”


Mas seu estado de alma, agonizante, impedia-lhe a percepção da própria resposta.
O imaterial suporte estava ali a fazer ruídos no pensamento.

Importava perceber, porém, que sua submissão ao objeto, bem como a rejeição por ele, eram atos de liberdade.
Tal submissão, não a reduzia ao nada....

No entusiasmo, quando a bengala trazia a tranquilidade de andar um pouco e somente um pouco, já aí nada havia de livre: coexistia uma falta de ar.

Desventura: não conseguia apartar-se, desapegar-se.  

A questão mesmo era saber se a via da vontade racional (largar a bengala ou transformá-la) poderia coexistir com a via dos seus sentidos frágeis e carentes da aprovação de cada passo...

Pensou numa extrema via , cujo princípio seria desumanizar-se. Infelizmente essa seria uma outra forma de prisão:a apatia.

Com extremo desejo de ter a alma em repouso, pousou a bengala.

Primeiro, encostada num canto.
Depois, atrapalhando, no chão, a passagem.

Até se desmaterializar totalmente.

Farpas pontiagudas perderam o som. A bengala nada lhe dizia. Não mais.


Na memória, apenas aroma de algo que um dia considerara amor.
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