sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CRÔNICAS DE SOLIDÃO V






Letícia

Sofria já naquela hora em que lera Sartre: “ a angústia surge pelo fato de sabermos que somos livres, livres pra escolher. Estamos condenados à liberdade. Somos senhores de nosso destino”

Letícia queria escolher o nada. Estava agonizante.
O que fazer?  As opções da vida estavam lá, quietas, esperando atrás de uma porta ou de paisagem sonhada. Essas escolhas não as tinha, pois não estava senhora de seu destino.Não sabia. Não sabia fazer.

Abafamento, insegurança, humor espremido, ressentimento, dor e ferida na alma. Medo. Era o que sentia: o doloroso aperto.Olhava por um buraco de fechadura - olhava atemorizada.Temia abrir a porta. O cotidiano simples era um ato bélico: poderia ir ao banheiro? conseguiria chegar à cozinha?
seria agredida por essas afrontas aos carcereiros que com ela moravam? Diuturnamente era submetida a armadilhas psicológicas ou físicas; não conseguia dar os passos sem grande ansiedade ou apreensão. Por vezes se continha para obter alguns benefícios. Isto de nada lhe servia.

II

A vida pela ótica do buraco:
Não podia ver o espaço externo completamente.
Via pedaços: a realidade tomava a estranha forma poligonal e circular.
Estava presa a essa realidade.Era prisioneira com chave na mão.
Por que não usava a chave? A outros parecia tão simples.

III

Trazia outros reféns consigo,
guardados pela fechadura:
suas várias formas de estar no mundo, reclusas.
Tudo em função de...?

III

Ah, Letícia era definitivamente afetiva. E pouco prática com sua vida.O que fazer? Se ficasse inerte, viriam os sintomas da ira tão engolida a lhe trazer úlcera; se tomasse as atitudes (que sabia) certas, o lastro da angústia seria maior.
Paralisou.
Entretanto, uma pequena inquietação permanecia: saio? ligo? choro? chuto o balde de uma vez?
Nem se chamava Letícia: mudara de nome na esperança do significado - alegria.
Desejava a alegria com o útero. Desejava parir alegria, vomitar alegria, suar alegria.
Mas estava detida. O veneno dos dias acarretara um efeito de vírus pernicioso: desconforto, dores e falta de ar. Não conhecia vacina que lhe sacudisse o bastante para virar sua leoa e sua senhora.
O que fazer?
Os agentes repressores estava ali, sempre a lembrar-lhe de que ela não podia ser livre e feliz.
A mãe, com objetivo de ajudar, anunciou comprar um urinol para que ela ficasse mais confortável e não precisasse abrir a porta. Nesse dia, Letícia chorou pela isenta ausente matriarca.

IV

Custosamente deu um passo... apenas um...
Voltou atrás num susto de liberdade. Naquele segundo, sentiu-se aliviada.Optou por apenas um passo - e um outro pra trás. Dia seguinte, acordou calma, até alegre e atenciosa consigo mesma. Tinha contudo de ficar inerte para reter essa paz. Arriscou outro passo... um passo apenas, interrompido por
telefone e urgências. Veio a voz já tão conhecida e amigavelmente opressora a lembrar da sua privilegiada condição de detenta cuidada com afeto amargo de comida e estada oferecidas com máxima crueldade.

Voltou a angústia e o medo - igualmente parceiros.

“Meu Deus! Estou trancafiada no agora? O que faço pra mover o fluxo de sangue e vida?”

Ficou completamente sem ar. Na alma, vazio. No corpo, insuficiência aórtica.

Pediu, pediu, pediu.

Pediu uma liminar de paz a Deus.

V

E, nesse dia, num súbito e curioso alívio, olhou a luz pela janela. Olhou firme.Não usou a chave.
Arrombou a fechadura da porta, arrancou-a da mente e saiu do porão.

VI

Decidiu caminhar pelas ruas já conhecidas - agora conseguia cheirá-las; saboreava cada passo firme às custas de muito esforço.

Estava finalmente só e bem.

Agora, sim, sabia o que fazer: viu o mar (realmente o viu), caminhou até uma livraria, tomou café.
Fez seu dia, sem se preocupar com frustrações que outrora eram um estímulo à sua tetraplegia emocional.

Sorriu.

Fez então jus ao nome escolhido.


Nota da autora: este conto-crônica fala sobre mim. Eu o assino e lavro. Dei-me o nome Letícia, cujo significado é alegria, na esperança de alcançá-la. Daquele cárcere raro lembro; porém o que escrevi até pouco se manteve em repetições vividas, dentro de contextos outros, alimentando um estado de espírito pungente. Não sei se seria capaz de cerzir a pele rasgada que reveste a alma; mas consigo, não sem pena, manter em pé o corpo e seguir, ainda que claudicante, as estradas que se anunciam. Alegria escolhi como nome; felicidade me acontece no susto-ilusão das auroras.

Um comentário:

  1. Incrível, destaco essa pérolas dentre outras: "Desejava a alegria com o útero".
    Prosa poética fina.

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