“Em família, sem dizer nem combinar a gente determina quem
são os maus, quem são os bons. Prende neles uma tarja e todo mundo
acredita:eles também.” (Lya Luft)
I
E ela que
pensara ter a vida inteira o próprio nome,
sentia o
peso do incômodo presente: nome + sobrenome = parentes
Aparentava
paz que lhe era verossímil,
não
autêntica.
Tirava-lhe
os pulmões, as cordas vocais e as pernas:
precisava
da fala autônoma, de correr e de inalar um mais-que-contentamento.
Não
pretendia a loucura,
nem muita
excitação.
Contudo
lhe era inviável a letargia tépida em que se metera.
Inadmissível
se ausentar da alegria e da liberdade.
Identificara-se
e se revoltara com o que lera de Pessoa na noite anterior: “é este estar entre, /Este quase, Este poder ser que. Isto.'
Ainda
assim se sentia presa às protocolares reuniões de família enfadonhas
- nelas
residia sua estranha forma de se aquecer.
Ela se
aconchegara ao marasmo.
II
Fernanda
queria mesmo
fazer uma
conta de chegar
para conseguir
o tal equilíbrio que as avós e tias tanto anunciavam em sua infância
(eram
elas submissas felizes).
Difícil -
o cotidiano era incontrolável: não
vinha com recurso avançar/recuar.
Não dava
pra passar a borracha nas rugas
não dava
pra remover as rusgas
não dava
pra desfocar o exato-latente momento das mágoas.
Num
súbito consentimento de impotência, lamentava:
possível sentir
sutilezas de felicidade; impossível prendê-las em imagem.
(Retina
devia ficar na boca: a alegria seria devorada e guardada
no corpo,
no
ventre,
como quem
tem uma constipação)
E tudo é
tão, não só, mas também, apesar, até que
E pois, e
tal qual, e quanto, conforme, se bem que.
E
simplesmente assim como.
III
Entretanto
Fernanda se garantia na insistência:
A vida
borra
distorce
gira
recorta
parece
que vai diminuindo aos poucos.
Mas
intriga, hipnotiza, atrai e cativa:
filhos,
amores,
pôr do
sol,
luar na
praia do Leblon,
café
expresso,
cheiro de
livro novo,
olhares
que se cruzam,
arroz com
açafrão,
vidas que
se entrelaçam,
abacaxi
com canela,
novos
amigos,
amigos de
sempre,
sorvete
de chocolate,
aconchego
de filho,
pão
quentinho,
gargalhadas,
suco de
melancia,
a paz de
estar só e bem,
- ou a
alegria de estar acompanhado -,
pizza sem
culpa,
horas em
uma biblioteca,
cheesecake,
cheiro de
chuva...
...e
seguir a vida.
Apalpar a
vida.
Compreendê-la.
Compartilhar:
fraqueza,
riso,
saudade,
alegria,
preguiça,
paixão,
receio,
conhecimento,
liberdade
paz.
Sim e
sim. Um dia a matemática funcionou.
Trazer
de volta para o corpo os pulmões, as cordas vocais e as pernas era o que de
mais precioso poderia fazer.
Era sua
esperança de branda euforia.
E equilíbrio.