terça-feira, 26 de maio de 2015

Crônicas de Solidão XIII - Palavras Íntimas





“Porque se chamava moço/Também se chamava estrada/Viagem de ventania/Porque se chamavam homens/Também se chamavam sonhos/E sonhos não envelhecem/ E basta contar compasso/E basta contar consigo/Que a chama não tem pavio/ E o rio de asfalto e gente/Entorna pelas ladeiras/Entope o meio-fioEsquina mais de um milhão/Quero ver então a gente, gente gente, gente...”(Milton Nascimento)




Uma vez por ano, homenageio Aurélio Gomes da Silva, meu pai. Neste ano já não sei quantas vezes ele esteve aqui. Morreu em 1996. Há um poema chamado “2 de dezembro”, que fala de mim, dele, do que senti. Meu pai, como escrevi, nunca foi funcionário de existir. Era patrão.

E era mandão. Imaginem alguém que veio do Sertão de Caicó para o Rio, na sequência adotado por um alemão judeu que viveu a guerra (perdera toda a família em Auschwitz) e foi morar em Porto Alegre, sendo rigidamente criado lá. Sobrou pra mim e para minha irmã. Minha irmã se casou cedo. Eu fiquei filha única e... danou-se.

Por exemplo, eu já tive um outro nome. Principalmente no Leblon, na praia, onde nasci e fui criada. Era assim: Filha (primeiro nome) do Aurélio(sobrenome). Ninguém me chamava de Rosane. Era Filha do Aurélio mesmo. Isso carregava vários matizes. Vou citá-los. “Cabra que quiser chegar perto da minha filha, vai ter de falar comigo”; “Ô, cidadão! Tá falando com ela por que mesmo?”; “Desadreia o sarrinho” (expressão cujo significado real jamais soube, mas sempre pressenti) – a expressão ora servia para sai daí, ora para despachar o desavisado, ora para sai da praia já, dentre outras coisas. Acho que jamais se arrependeu da forma como me criou.

Mas era uma canseira arrumar namorado. Uma canseira. Ô. Os rapazes queriam ser meus amigos... Sei que fui adolescente desaforada em certo sentido. Também não gostava de desavisados. Sei que fui estranha também. Eu ia para a Cupertino Durão jogar vôlei e depois me recolhia com um livro ou jornal. Não era popular. Os mais velhos da praia me diziam “menina, desse jeito você não casa; os garotos não gostam de menina nerd.
(cdf, na época).

Por outro lado, ele era querido por muita, muita gente mesmo. Era impressionante a legião de jovens a acompanhá-lo, a ouvir seus conselhos ou a tomar cerveja com ele.
Tinha carisma incrível. Faz 7 anos, encontrei um amigo de adolescência que me disse: “Se não fosse pelo seu pai, estaria na lama, nas drogas, na desgraça”. Mandou mail para minha mãe, fazendo questão de homenageá-lo. Ele ajudava a qualquer pessoa que lhe pedisse conselho, dinheiro, acolhida, não importa – não pedia retribuição. Ele, durão, tinha um coração incrivelmente bondoso.

Quanto a questões políticas, em plenos anos 60, 70, meu pai não era de esquerda, de direita, de centro, de nada. Ele ERA. Tinha suas convicções, seus valores, sua ética. Principalmente uma noção muito definida do que era justo. Então, tanto foi capaz de enfiar gente (bem conhecida por nós), fugida das milícias, num fusca para levar para fora do país, como também conversava calmamente com militares nas ruas – sem medo sem complicações e sem culpas. Esquerdas e direitas gostavam dele justamente porque ele não era hipócrita e jamais, jamais ficava em cima do muro. Falava na lata. Na cara de qualquer um o que pensava. Seu espírito era LIVRE.

Então, apesar de ser rígido quanto a princípios, criando a filha debaixo dos mesmos, me ensinava também a ser LIVRE, correta, sincera, honrada. Não se enganem. Isso nada tinha a ver com puritanismos, etc. Isso vinha das convicções de quem sobreviveu, ainda criança, à dificuldade de conseguir comida no Sertão de Caicó; depois se viu em berço esplêndido, com todas as facilidades possíveis e inimagináveis e NUNCA, nunca teve nariz empinado, jamais foi arrogante ou soberbo. Falava com “gente importante” da mesmíssima maneira com que falava com porteiro e isso não era uma “concessão” à hipocrisia. Era legítimo, era ELE.

Dizia:“comida que se põe no prato se come toda”; “não mostre o que você tem, mostre, quando e somente quando necessário, quem você é”; “tenha compaixão”; “diga bom dia, boa tarde, boa noite a quem quer que seja”; “não acredite em quem não olha nos olhos” e outras coisas mais.

Gostava de gentes, de assuntar, de pescar. Gostava de existir.
Os anos passam e cada vez mais sinto falta dele. Sinto falta da voz, do olhar, da energia, da sensação de que nada me aconteceria se ele estivesse perto. É recente o episódio de calhordice pelo que passei e minha família também. Fora ele vivo, não teria ocorrido.

Hoje sei que sou muito Filha do Aurélio, gostaria de mudar meu RG. Rosane não me basta. Mas sei também que ele deixou legado. Eu também sou Aurélio, quando necessário: falo, grito, escrevo, não fico em cima do muro e não sou funcionária da vida.
Termino esta crônica com lágrimas legítimas, pois escrevo aqui o que vai no meu mais profundo abismo de sentimento. Ele precisava ser exposto, pois um homem como meu pai precisa ser apresentado como um exemplo de quem torna a vida útil e ao mesmo tempo saborosa.

E...
 “O meu medo maior é o espelho se quebrar, meu medo maior é o espelho se quebrar,
meu medo maior é o espelho se quebrar, meu medo maior é o espelho se quebrar...”


Para quem não me conhece, Sou Filha de Aurélio, neta natural de negro, filha de negro, filha de branca folha de papel, neta adotada de judeu e com um imenso orgulho grego do génos herdado. O que aqui apresentei foram honradez, honestidade, sinceridade, bondade DELE. Palavras muito faladas e pouco praticadas neste mundo em que vivemos.

“E lá se vaaaiii, mais um diaaaaa...”

Valete, Frates
Soli Deo Gloria

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